28.12.07

Crônica da Tinê e Foto também


Esperança
Quase todo fim de ano o Clube de Engenharia no Rio se enchia de crianças barulhentas para assistir o show do Carequinha na companhia do arlequim Fred e do trapalhão anãozinho. Não era circo, não tinha animais em cena. Cavalos, ursos e leões não caberiam nos elevadores de serviço do prédio; ainda haveria o risco de um deles sobrevoar a avenida Rio Branco e ter uma aterrissagem mal sucedida. Trapezistas, nem pensar. Para os organizadores do evento já era o máximo levar a meninada às alturas do último andar. Apenas cantigas folclóricas ou natalinas comuns entre os pequenos daquela época. Cirandas. Vermelho. Verde. Amarelo. Bolas de gás. Um indispensável mágico. Sem coelhos. Só pombas, ao menos estas voam naturalmente, não há perigo. Sorteio de brindes nos intervalos. Cada cantiga terminava com uma lição. "Escravos de Jó, jogavam o caxangá..." e o palhaço desfiava a vida dos antigos escravos. "Tuca Maruca Lelê taca..." seguida da vida dos curumins na taba. "Eu não vou criar galinha pra dar pinto pra ninguém!", contava a vida do camponês. "Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel...", emendada com as diferenças entre os filhos dos associados ali presentes e os da periferia sem festa. Para não esquecer os ensinamentos, na saída tinha à venda os elepês, o ganha-pão adicional do pedagógico palhaço.

Vinte anos depois, reencontro o artista em espetáculo semelhante num clube do interior mineiro: a mesma disposição, as mesmas trapalhadas. Mas o público era outro, requeria canções 'detalhadas' sobre as coisas da cidade grande... e queria cassetes, não elepês. Outros vinte anos se passaram e aquele palhaço partiu para o circo celestial, deixou vagas lembranças em adultos que o adoravam em criança.

Um deles contou-me seu infortúnio ao querer levar um pouco de fantasia no dia de Natal. Programou-se para ser Papai Noel da pequena S.M. que conhecera na porta de um supermercado. Rabiscado num guardanapo de boteco: vila de operários, casa tal, número tal, fundos. Ele não foi na noite do dia 24 porque as pessoas do interior costumam ir a casa de parentes na roça ou, sendo estas de muita fé, passam a data numa das dezenas de igrejas, católicas ou evangélicas. Hoje cedo, armado de sacolas, lá foi ele a pé para fazer surpresa. A rua começava na antiga estação e desembocava na rodovia. Subiu. Desceu. Nada. Rua longa sem enfeites. A ladeira fazia curva na parte mais íngreme. Não era vila. Operários, alguns. Não havia calçada. Escadas estreitas. Os números eram confusos: casa da frente, fundo, outro fundo, sucessivos fundos barranco abaixo, praticamente o último fundo era um puxado sobre o matagal em baixo. A figura estranha despertou curiosidade. Alguns homens papeavam sentados no meio-fio. Um bêbado se dirigia a quem passasse como sendo seu compadre ou sua comadre. Aqui, uma mulher sentada à porta. Ali, outra pintava as unhas do pé. No conjunto, pareciam casinhas com figurantes de maquete: tudo estático, em silêncio observador. Uma menina de chuquinha vestida de azul correu abraçada a um urso de plástico azul. Meninos em bicicletas recauchutadas. De uma janela via-se um velho de pé a tomar sopa. De uma porta entreaberta, dois meninos assistiam desenho animado na tevê numa sala atulhada de móveis. A todos foi feita a pergunta e vinham as respostas: sei não, se mudaram, talvez mais pra cima, foram embora. Eram papeleiros. Nome pomposo para catadores de rua.

O visitante pensou em esvaziar o saco, ali mesmo. Crianças não faltavam, as que se aproximavam não desviaram os olhos do papel de presente que escapava de uma das sacolas. Mas nenhum dos possíveis candidatos servia para as prendas que alegrariam uma menininha. E se ela aparecesse no fim da rua? Ouvi tudo e recomendei ao frustrado Noel guardar o saco-presente, em cidade pequena todos se esbarram uns nos outros, ele encontraria a criança. Na melhor das hipóteses, as prendas chegariam ao seu destino antes do ano acabar. Sabe-se lá se o grande presente reservado à escolhida S.M. não foi o de mudar-se com seus pais para um lugar melhor? Algo que você não poderia dar-lhe, mesmo que quisesse? Nesse caso, outra menina, uma neném-ninguém, filha de maria-sei-lá-quem e de josé-sem-um-vintém, não escolhida, que não ganhou boneca nem cesta, levaria a melhor. Seria uma engraçada dupla surpresa: para quem fechou seu ano velho com a promessa cumprida e para quem começou seu ano novo em regalia!
Tinê Soares [25/12/2007 - 15:06:14]
(Foto “Janela improvisada”)

7 comentários:

Unknown disse...

Muita boa a crônica da Tiné, o texto expressa um olhar fotográfico aguçado. Fiquei emocionado com a força da imagem nas palavras da Tiné. Aproveito o espaço para desejar um 2008 repleto de realizações para o Liberati e para a Tiné.
Fernando Rabelo.

TS disse...

Liberati,
permita-me dizer: se vc não é uma mãe, tem a paciência de uma;
rio porque vc publicou até os segundos!
Ainda falta p/ desejar boas saídas... por ora, grata, beijos.

TS disse...

Fernando,
suas palavras deixaram-me 'inchada';
um dia ainda chegarei aos seus pés - no bom sentido, bien sûre;
já me ralei toda num pântano próximo só pra 'tentar' clicar uma coruja branca: fotógrafo bom tem que ter espírito esportivo e andar com 'farmacinha' na mochila além do cantil cheio. - eheheh.
Minha vocação é incompleta, acho.

Grata. Meus votos irão em sua page. Até lá! Tinê

Anônimo disse...

Mangedoura não, Cocho (com ch não com x) onde IHS nasce e fica nascido : no meio das Vacas, com cheiro de estrume mesmo na 'mangedoura', cocho na realidade, em que IHS permanece. zé

LIBERATI disse...

Querido amigo Fernando, fico honrado com sua visita a este blogue.
Desejo para você e para sua família um ano novo cheio de boa sorte.
Até mais velho companheiro!

LIBERATI disse...

Querida Tinê, você me emociona e parece que emociona muito mais gente. Seus textos são um privilégio que eu recebo com muito gosto.
bjs

LIBERATI disse...

Querido Zé e seu pres-"zé"-pio.
Um belo ano pra você com muita sorte e muitas jatakas (sou mezzo disléxico, ou serão jakatas?)
Abração