14.12.07

Crônica da Tinê - Ivanhoé & Sapatos



Sapatada

A probabilidade de esbarrarmos uma na outra era mínima. Morávamos num prédio do Leblon de seis andares, vinte apartamentos por andar, eu de frente para o quartel, ela de frente para a vila. Ela tinha o dobro da minha idade, o que significa que não tínhamos itinerários comuns. Nem nos elevadores e escadas, nem na padaria, até porque àquela época o sêo Arnaldo vinha com o cesto carregado de sonhos escondidos sob as bisnagas à nossa porta 614. Pelos toques da campainha eu já sabia quem era e disparava diante da possibilidade de me lambuzar com um cremoso sonho, o que nem sempre acontecia para não me acostumar, os adultos me deixavam com a boca cheia d'água.

"Alecrim, alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado...", ouvi ao retornar da aula. Não era a empregada, mas fui até lá. Na área de serviço debrucei-me no parapeito a vasculhar de cima a baixo, de ouvidos em pé. - "Ai meu amor, amor, amor, quem te disse assim, que a flor do campo era o alecrim?" - Quem será?

O legislativo e o executivo da casa eram exercidos pela mesma pessoa, na figura materna. Em seu código havia o capítulo "Vizinhança", com três parágrafos claros, a saber: definição, conduta e sanções adequadas à idade. Eu estava na faixa do sem Shirley Temple do Cine Kolynos, sem Tia Gladys com seu baú de leituras, sem Ivanhoé e Bat Masterson (apaixonada pelos dois, infiel!) e a punição máxima me deixaria sem bicicleta ou nada de batatinha-frita com guaraná no Luna depois da praia de domingo. Ou seja, "xeretar a casa alheia é feio, menina."

Bolei um artifício para ir à zona proibida: propus engraxar os sapatos da família. Ainda ganhava uma moeda de duzentos cruzeiros pela semanada, tamanha a satisfação do contratante. Beleza! Enquanto dispunha os pares por tamanho, sujidade, preto, marrom e branco, ia emborcar no muro para rastrear a voz. O problema é que a cantoria nunca coincidia com a hora da tarefa. Quando ouvia, não tinha sapato - nem um tênis para receber uma pincelada de alvaiade. Geneci ainda se recusava a desligar seu estridente radinho de pilha. Mas, o que havia de especial naquela voz? O repertório e o sotaque.

Até que um dia, uma voz matrona berrou "ó Nelita, qu' fazes? Deixa-te de parvoíces, já são horas!". Concordo, já não era sem tempo, agora sei o nome dela, Nelita. Veio do Minho. Esguia, de cabelos castanhos compridos, nem feia nem bonita, ela passou por uma porta a cantarolar "nesta rua tem um bosque que se chama solidão, dentro dele há um anjo que roubou meu coração."

Antes que eu pudesse avaliar o larápio angelical, veio a cantiga perfumada. Foi a deixa. Apoiado o queixo sobre as mãos cruzadas, cabeça à mostra para a vizinha de baixo, vacilante emendei "minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá..." A garota do quarto andar levantou os tais olhos castanhos para cima, chamou-me de pirralha intrometida e saiu a bater portas. Um espanto. Eu achara que o canto aproximasse os vizinhos como se compartilhassem varais de roupas no quintal comum. Ou será que aquela minhota enfezada cantava à capela para não chorar os próprios males? Terá algo a ver com o anjo do bosque? Meus oito anos eram indagatórios e os adultos não me tinham paciência. Minha reação foi escolher o sapato maior, de solado mais pesado, e atirá-lo contra a porta dos alecrins, estilhaços de parte da janela voaram - sou amigável mas não levo desaforo, que os cacos a carreguem!

Levei um pito, daqueles. Tive de engraxar sapato de graça por um mês. De som, só o chiado do radinho pendurado na cozinha. Sentença cumprida e caso encerrado, fui assistir o meu lindo cavaleiro. De repente, um alecrim desbotado invadiu minha aventura medieval em preto e branco. Sem desgrudar os olhos do meu galã, dei de ombros e murmurei aos meus botões "... a aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá, Manoela." Elevei o som da tevê no volume máximo. Meus bosques tiveram mais vida e meus sonhos, mais amores.
[Tinê Soares – 10/dezembro/2007]

3 comentários:

Anônimo disse...

Liberati, muito significativa a mancha vermelha no sapato... acertou!
O olhar hipnótico do justiceiro banhado em hemoglobinas... Uau, obrigadão.
bjs especiais,
Tinê - 15dez07

LIBERATI disse...

Querida Tinê, eu que fico agradecido por ter suas crônicas no meu blogue.
A outra sai no Natal.
bjs

Anônimo disse...

se roubei, se roubei seu coração
tu roubaste tu roubaste o meu também
se roubei se roubei teu coração
é porque é porque te quero bem