30.12.07

Desejos de Poder


(Este é o artigo de final de ano do Professor Marco Aurélio Nogueira e foi publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo em 22 de dezembro de 2007)
Se olharmos retrospectivamente para o ano que ora se encerra, não será difícil constatar que a política, honrando suas tradições, organizou-se em torno da disputa pela conquista, pelo uso e pela conservação do poder.

A determinação do presidente Hugo Chávez em ver aprovado o plebiscito que lhe daria condições de se candidatar sucessivas vezes ao cargo, tanto quanto a iniciativa de ex-comunistas e ex-democratas-cristãos italianos de se fundirem em um novo partido de centro-esquerda, fazem mais sentido quando pensadas tendo em vista a questão do poder. Boa parte da agenda brasileira de 2007 repercutiu um eventual interesse do presidente Lula em conquistar um terceiro mandato, fato por ele sempre desmentido mas deixado em banho-maria graças à iniciativa de deputados da base governista no Congresso. Foi também por questões de poder que as oposições se empenharam na derrota da CPMF, decisão que refletiu muito mais cálculos eleitorais (tendo em vista as eleições de 2008, momento formal de luta aberta pelo poder) e erros governamentais do que uma avaliação do significado daquele imposto e da função que ele desempenha na vida nacional. Foi como se o governo Lula devesse ser responsabilizado pela criação e manutenção de um tributo que existia há 14 anos, que foi adotado para financiar políticas da Saúde e que sempre foi controvertido. Supôs-se que a população toda seria contra a CPMF, encurralou-se o governo e partiu-se para um bem-sucedido ataque final. Os operadores políticos governamentais, por sua vez, limitaram-se à retórica mais ou menos abstrata da justiça social e não souberam usar o poder real de que dispõem para safar-se da armadilha.

Amado e odiado indistintamente, o poder perturba, leva pessoas à loucura, corrompe e alucina, mas também serve para que se movam montanhas e para que multidões dispersas se organizem. O poder reprime, incomoda e prejudica, mas também acalenta, protege, incentiva e beneficia. Costuma ser utilizado tanto para conservar quanto para revolucionar, tanto para promover mudanças quanto para preservar o status quo. É visto como instrumento e como fim último, como recurso e como meio de vida.

“É tendência geral de todos os homens um perpétuo e irrequieto desejo de poder, que cessa apenas com a morte”, escreveu Hobbes no Leviatã (1651). Ele reiterava uma idéia anterior, que Maquiavel havia exposto em seus Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio (1517): “não se pode determinar com clareza que espécie de homem é mais nociva numa república: a dos que desejam adquirir o que não possuem ou a dos que só querem conservar as vantagens já alcançadas”. Maquiavel não economizaria palavras: “a sede de poder é tão forte quanto a sede de vingança, se não for mais forte ainda”.

Não há política sem poder. Mesmo em suas formas mais generosas – as da ação que busca emancipar, livrar pessoas da desigualdade, viabilizar a “boa sociedade” ou resistir a governos tirânicos –, a política é uma atividade balizada pelo poder. Sempre se faz a partir do poder, tendo em vista o poder, contra ele ou em direção a ele, como observou várias vezes Norberto Bobbio.

Mas política não é somente desejo de poder. É também aposta nas vantagens da vida coletiva, um espaço em que se combate para ampliar as margens de liberdade e construir os fundamentos da vida comum.

Hoje nos deparamos com uma situação paradoxal. A democratização e a individualização modernas se expandiram expressivamente, do mesmo modo que a democracia parece consolidada como regime político, em que pesem falhas e sobressaltos. Temos mais poder como pessoas, mais direitos e mais liberdade para contestar a autoridade e fazer coisas, porém nos encontramos em uma situação geral na qual nos sentimos oprimidos pela incerteza, pela insegurança e pela inoperância da maioria dos centros que nos governam. Não sabemos visualizar com clareza a fonte desta opressão e deste mal-estar, e vivemos com a sensação de que governantes, chefes e dirigentes não têm assim tanto poder, permanecendo muitas vezes em segundo plano. O mercado e o capital são sempre mais poderosos, os Estados parecem sem força, cercados por sistemas que não conseguem regular. Há um clima de crise de autoridade e de “desinstitucionalização”, ao mesmo tempo em que se abrem novos horizontes e possibilidades.

O poder político tem hoje efetivamente menos poder. Diversos processos objetivos, associados ao que se costuma chamar de globalização e à radicalização da vida moderna, estão a reduzir o grau de controle que as estruturas governamentais têm sobre as sociedades. Quando territórios e pessoas são afetados por muitos fluxos (comerciais, de informação, culturais, políticos) ou sofrem os efeitos de decisões tomadas por diferentes atores ou protagonistas, ou quando simplesmente não podem ser alvo de opções governamentais voluntárias e soberanas, o poder político declina. Passa-se a viver sob os efeitos de uma rede de poderes cruzados, que se remetem uns aos outros e tendem a problematizar o poder central e a fazer sangrar o sistema representativo.

Podemos olhar para o ano que se inicia com uma dupla expectativa: não há como esperar, ingenuamente, que o poder político deixe de nos oprimir, não sirva para mais nada e nem possa ser útil, mas as circunstâncias da vida atual estão reduzindo a arrogância do poder e, nesta medida, criam muitas oportunidades para que se inicie uma fase social mais rica e interessante. Abrem-se novos espaços para que grupos, organizações e indivíduos façam política e interfiram na condução das coisas públicas. Isso, por enquanto, é somente uma possibilidade, mas não há porque desprezar o que ela carrega de potência, nem porque deixar de valorizar seus primeiros gestos e ruídos.

Bom ano novo a todos.

4 comentários:

Anônimo disse...

querer é poder. se a pessoa deixa de querer some o poder: contemptus mundi, abandono do mundo, o viver no deserto-floresta só de frutas e raízes (que diga-se de passagem não é coisa pouca) é o fim do poder. poder é querer. se o sujeito deixa de querer o poder não lhe atinge mais. O capitalismo não atinge o Islã poruqe o Islã cultiva a humildade e a simplicidade distante da sociedade de consumo, p. ex.. zé

sizenando disse...

lembro de uma aula que assisti, minha primeira aula na Sociologia e Política aqui em sampa (eu não falava sampa, aprendi esse negócio acho que por causa da interneti, acho esquisito, seja como for). Era o M.A.Nogueira: ele disse, em dado momento, sim estou citando fora de contexto, que tudo era política, a compra de um tomate era um gesto político. Na época foi uma revelação pra mim, verdade, não estou de gozação. E, olhem, eram os anos setenta.
Sempre respeitei o Marco Aurélio porque, além da bagagem, do estofo intelectual, sempre foi educado e me tratou com gentileza e simpatia.
O texto que vc transcreve aqui, liberati, comprova a firmeza e clareza na exposição de idéias do supracitado...
A única dúvida que me cutuca, de tudo que ele escreveu, vem da afirmação: "... mas as circunstâncias da vida atual estão reduzindo a arrogância do poder e, nesta medida, criam muitas oportunidades para que se inicie uma fase social mais rica e interessante."
Apesar de tudo que está argumentado acima, não me parece que a arrogância do poder arrefeceu - arrogância que creio aparecer no dia a dia, no preparo do noticiário, no lançamento de informações e contra-informações que os meios de comunicaçao diariamente jogam em nossa cara. Chamo de arrogância dizer que se a CPMF não for aprovada o mundo vai acabar; chamo de arrogância o presidente dizer não sabia de nada, meu povo! ou, e principalmente, o voto ainda ser obrigatório em nosso país.
Não entendo de política, sou um cidadão comum obrigado a pagar impostos que não compreendo, a votar em candidatos, escolher entre os bons, votar em gente que me provocam "enguios" e aguentar tantos outros desaforos.
Não estou criticando o Marco Aurélio, só estou, no momento, achando o seguinte: sem arrogância, como enfrentar o "... clima de crise de autoridade e de “desinstitucionalização...".
Seja como for, vale a pena ler jornal e o Liberatinews.

LIBERATI disse...

Caro Zé, bons textos para seu blogue com as jatakas é o que eu desejo.
Grande abraço

LIBERATI disse...

Querido amigo Sizenando, Marco Aurélio é meu grande amigo histórico. Como sempre seu pensamento ilumina algo da sociedade brasileira, ou mesmo das coisas desse mundão.
O que entendí é que arrogância derrotou o PT e o governo em algumas questões. Quanto à direita, ela é sempre arrogante, mas tem alguns que fazem um show onde o populismo abre um grande sorriso falso, aquele tapinha nas costas...aquelas coisas...Talvez se o nosso presidente e seus ministros calçarem as sandálias da humildade e arregaçarem as mangas para enfrentar o duro jogo do poder com o fim de melhorar a vida do eleitorado, aí existe alguma possiblidade de tudo tomar um rumo novo, algo que nos liberte de um destino que nem quero imaginar...
grande abraço