12.1.08

Crônica da Tinê - Carretel da Vida


CARRETEL DA VIDA
(In Memoriam de C. M. de S.)
O retrós não é do tempo do metrô. O enterro de hoje não foi do meu avô.
Em tarjas pretas, flores e ramos atados. Sentimentos sobre o caixão debruçados.
Lágrimas das senhoras sentadas. Sussurros dos homens postados.
Trago o envelope amarelo, selos carimbados. Círculos e sinais pretos manchados.
Dentro há uma roda cintilante, giram sambas noelicamente rosados que alguém enviou.
"Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho..."

Contar as dádivas e as penas da vida não é retrô. O cálido sopro eriça as plumas da ave. Menos as do passarinho-porcelana sobre o birô. O sopro divino encaminha as penas. O sopro humano afasta o pó. O que o português Sá de Miranda quis dizer com 'mudaves' ? Aves em silêncio total? Na mudança das penas? Mudo eu ou mudam as aves? Emudeço. Prefiro mudar de ares. Mudo, não cego e quase surdo. Mal escuto o bumbo, mas ainda enxergo muito bem o colorido das aves. Cores fulgurantes do macho sobre fêmea de tons pardos.

Muda o canto, outro ritmo, vira a letra, troca o disco, desvia o leito, eu me viro.
O rastro dos pés na lama segue a margem do rio que serpenteia a serra até marulhar. Confetes, só ao chegar lá. Os pés são do menino-velho de olhos azuis. O barquinho de papel que desce a corrente é o velho-menino de olhos fechados a caminho do céu rente ao mar. No teto da sala, um sol à esquerda. Uma lua à direita. Entremeado estelar.

Estou entre magenta, carmim desbotado, rosa-chá.
O pombo-correio voa num círculo fechado imóvel no muro bambo marrom empenado.
Trem cinza apita nos sapatos apertados, os pés chiam doídos, mordentes.
Os retalhos de amostra recombinados: seda, cetim, tafetá, tudo amassado.
As cinzas virão depois do homem enterrado.
Sobre a tumba, um botão de rosa irisado.
Eu pombo, tu pombas, ele pomba.
Adeus às lorotas sobre pescarias e caçadas.
Aos capiaus que circulam as picadas e às piadas, adeus!
Pois aos pombais esse tio Raimundo não retorna mais. Não adianta arrulhar. Rompeu-se o fio da vida, não há nó que dê jeito. Ficam os filhos e os netos para alinhavar. Fica a mulher na costura invisível das teclas. Ficam os martelos a soar as cordas. Sons a escapar pelas frestas. Versos a cair dos trilhos. Recolheram as sapucaias do rio.

A impaciência tamborilou dedos no vidro. O pombo de asas abertas. Brancas. Como a Luz. As rimas se embolaram na trilha do velório ao armarinho. Do disco ao risco, só a prosa ficou a rodar, a rodar, a rodar, a rodar... ligeiro, tão rápido, que se olharmos só veremos a pomba suspensa parada no ar...
---- Senhora, já escolheu o que deseja?
Entre fios, o indicador aponta mostruário.
---- Sim, eu quero um retrós de linha encarnada.
**************************************************
(Tinê Soares - 8/1/2008 - 16:13:52)

11 comentários:

TS disse...

Bruno, agradeço pela ilustra, ficou lindo, era nisso que eu pensava... as raízes ficariam muito tristes... a vida continua. Beijos da T.

LIBERATI disse...

Cara Tinê, fico contente em saber que você gostou da edição.Emocionante e delicado seu texto Estou esperando a próxima crônica.
Um beijo

Fernando Rabelo-Editor disse...

Muito bom,também estarei aguardando sua próxima crônica, parabéns mais uma vez. Fernando Rabelo.

Anônimo disse...

Triste e para mim, tão incômodo. Engraçado... escrevi há muito tempo sobre o tema, mas de forma diferenciada. Um dos contos que mais gosto e coloquei no "Curtas Historias" de forma reduzida: http://curtashistorias.nafoto.net/photo20071118203400.html
Mas o que me espantou em sua crônica foram as semelhanças com nome e sobrenomes. As iniciais do meu sobrenome são exatamente c.m. de s. E os olhos azuis... Ed vem de Edmundo... Desculpe. Ao invés de comentar sobre seu texto (tão delicadamente escrito) fiquei aqui a estabelecer paralelos. :) Mas que me fizeram arrepiar! Bjão.

Anônimo disse...

Sá de Miranda é superior e amigo de Fernando Pessoa : a amizade dos dois poetas é poesia. Luis de Camões. Sá de Miranda morreu cedo. Como Noel Róseo. E tantos outros poetas. Mors janua vitae. zé

TS disse...

ED, não sabia de suas "Curtas Histórias" nem de suas iniciais, mas acho q as coincidências páram aí; o txt homenageia um parente recém-falecido a beirar os setent'anos, pai de uma arquiteta e de um violonista clássico, q nunca curtiu cinema - como você - mas adorava pescar e contar piadas de roceiro; além disso, que eu saiba, vc é ruivo, ele era louríssimo!
Não fosse a pomba, não entraria o Raimundo...
Beijos pra Beagá. E desarrepie, ok?
Tinê :)))

TS disse...

ZE, tua cuca ainda está a passear?
Acorda!
Sá de Miranda é contemporâneo de Gil Vicente... se ele reencarnou como amigo de Fernando Pessoa, já serão outros quinhentos... anos! :)))

Bjj iluminados da T.

TS disse...

Liberati, imagina se o Sérgio Porto fosse vivo, o que ele diria do episódio... estava eu tão triste e, de repente, caí na risada... será nervoso? só agora descobri erros de gênero - um dia corrigirei, prometo.
:O!

ObrigadA, boa semana, bj da T.

LIBERATI disse...

Querida Tinê, delicadíssima sua crônica e como tudo que sai do coração encontra por um mistério que como é mistério ainda não podemos explicar, encontra como dizia outras palavras que sairam de outro coração e que por este milagre que é a internet se encontram.
E dizer que tudo e todas as possibilidades estão em nós e nós somos comunhão. Por favor nenhuma interpretação religiosa. É que essa energia queiam.
Burn love heart
bjs

Anônimo disse...

Tinê desculpe! É Sá Carneiro! Encenei Gil Vicente na escola de História e não sabia da pinimba com este Sá de Miranda. Os autos deviam ser populares na realidade. zé

Anônimo disse...

o 'mudaves' parece o 'me desavim' . Belo o 'comigo me desavim'! Ave! zé