4.1.08

Crônica da Tinê - A flor dos Reis


Aos Reis, a flor!
Último mergulho na piscina da cachoeira, um olhar embevecido para o Véu de Noiva. Uma longa aspirada no capim, seja barba-de-bode ou cabelo-de-bruxa, tudo é cheiroso. Ela deixa o camping na Serra do Cipó a caminho da visita à sobrinha-neta; aquela pobrezinha à boca do fogão desde as natalinas não acerta o pão - esse povo só pára a comilança no dia de...

A mulher é de pouca simpatia mas é engraçada, sobretudo quando se zanga e provoca risos. Adverte que não é dona Lalá, que se chama Eulália Boucinhas Trigo, mais o Ribeiro do finado marido Jervásio, com jota, por favor. E ai de quem chamar seu filho João de Janjão! Supersticiosa, leva consigo saquinhos misteriosos feito um druida, diz ela que não vive sem os seus temperos mas a gente desconfia que sejam muiraquitãs, aqueles sapinhos... Seu brasão seria uma colher de pau e uma escumadeira de ferro cruzadas sobre trigal de ouro. Firme, ordena as tarefas - "você corta os pepinos, você lava e seca folhinha por folhinha, você descasca os abacaxis, você fatia as cebolas sem reclamar... mas quem tempera e acende a chama sou eu!"

A galera-natureba a convida aos passeios por esperteza: é delícia garantida para todos os paladares desde que lhe garantam uma boa cama sem borrachudos. Seu terreiro é a cozinha. Se para onde ela for não existir uma, não se preocupe: ela carrega ou improvisa uma, nem que seja um buraco forrado de pedras no chão à maneira tapuia coberto por um velho páraquedas do exército suspenso entre duas árvores. Não ouse chamá-la de farofeira! Sua erudição é extensa, de velhos alfarrábios sobre crendices alimentares às últimas novidades inox no setor "kitchen-tools-made-in-swiss" do mais luxuoso shopping. Apesar de adaptada, ela diz que nada é melhor do que uma panela de barro ou de pedra-sabão. Um caldeirão sobre a fogueira serve a todas alquimias - "um pombo bem feito se passa por codorna à marie-antoinette!" Sabe de cor as receitas coletadas por Câmara Cascudo pelos sertões da vida. Sabe preparar jacaré e tatu. Sua bíblia é um velho caderno de páginas amarelecidas com caligrafias de cinco gerações onde se pode desvendar segredos que substituem os enlatados, os liofilizados, os condensados, as barrinhas protéicas que de proteínas nada têm, "as rações desidratadas" como ela diz, descobrir que quase todos os ingredientes modernos são artificiais, e que "madeleines" e "vienenses" e "bolinhos-de-padre" são quase a mesma coisa, mas a minha rabanada é distinta à sua fatia-dourada, fim de papo.

Mal descarregou seus trens do porta-malas, vestiu o avental de moranguinhos e foi logo para a cozinha de braços dados com a sobrinha enquanto explicava-lhe a importância dos Reis Magos. Sussurrava os significados como se transmitidos num confessionário de algum convento - Gaspar significa “Aquele que vai inspecionar”, Melquior, “Meu Rei é Luz”, e Baltazar, “Deus manifesta o Rei” - enquanto cortava as frutas com a destreza de um 'sushi-man'. Era vital pôr a mão na massa com ternura e contrição de quem faz hóstias, jamais deitar lágrimas à mistura - "o sal desanda ao cozer!" -, além de adequar os ingredientes à cultura local, completou, sem parar de picar a rapadura para fazer o melaço em substituição ao mel. Os figos são indispensáveis e aqui temos de qualidade. Se não tem cerejas, use as acerolas do quintal. Até mangas fatiadas. Polvilhe com coco ralado. Cada rei usa a mirra, o ouro e o incenso que tem.

Lembre-se, dizia dona Eulália, não é preciso quebrar cocos na ladeira do Piá: por maior que seja a fé, nenhuma receita funciona se não for bem gerenciada e o pão não for compartilhado. Seja criativa. Não quer a forma de rosca? Tudo bem. Que no dia 6 de janeiro ofereça a todos uma doce flor pelos Santos Reis!
[Tinê Soares – 02/01/2008 - 17:15:52]
N.R. A foto foi feita pela autora da crônica

4 comentários:

Anônimo disse...

Tinê, 'tá super instrutiva, pedagógica mesmo sua crônica. Linda Eulália. 'comida que não é dividida, é comida sem vida'. dentro do príncipio mesmo do dom / contradom, agalma / antalma. Corretas as traduções dos nomes dos reis: Baltazar também é nome de Daniel o profeta grande e do rei de Babel que põe as mãos nas taças de prata: e acontece aquele coisa toda como narrada no livro da profecia de Daniel. São também os Três Lamas, sendo Dalai o primeiro. zé

LIBERATI disse...

Caro Zé, Tinê é uma bela cronista. Queremos mais sua escrita e sua poesia.

Anônimo disse...

quem presenteou os reis desta vez foi vc com esta crônica.Gostei muito achei o texto rico e muito criativo beijosre

Anônimo disse...

Tinê, o dia de reis tem um significado especial para mim...adoro as folias de reis, os reisados que, por desgraça, estão se perdendo de nosso folclore nordestino. Agora na Europa, me toca comer o Roscón de los reyes.
Beijos