22.5.08

Crônica de Rosa Artigas - "Decifra-me ou te devoro"


(Rosa Artigas, eleita já pela redação nossa correspondente em Sampa vem abrilhantar nosso blogue com uma bela crônica que escreveu em 2005, mas que permanece atualíssima.)
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São Paulo nasceu de caminhos. Caminhos de índios, de tropa, de ferro, de asfalto feitos para chegar e partir. A cidade cresceu, se agigantou com gente que não veio para ficar. Formou-se como morada provisória de milhares e milhões de nômades urbanos, cujo futuro estava fora daqui: enricar e retornar às origens, ir para o campo, buscar o mar, desatravessar o oceano, ser cidadão em outro lugar. Como a estada se pretendia curta, tornou-se provisória a cidade. O tempo e o espaço submergiram num presente perpétuo, sem raízes no passado, nem projetos de futuro.
Como nada em São Paulo parece ter permanência, o novo submete o velho sem lhe deixar testemunho e insiste na rapidez imposta pelo ritmo alucinante da cidade que não pode parar. É certo que alguns restos arqueológicos, às vezes, são postos em redomas como exemplos exóticos de um tempo que escorreu entre os dedos: um palacete aqui, algumas árvores ali, uma reserva de mata, uma tribo de índios, ruínas, entulhos, cacos de vidro. O que predomina, todavia, são os edifícios, as avenidas, as ruas, os espaços que continuam sendo construídos, indefinidamente, sobre paisagens ignotas. Os rios são tampados e transformados em galerias de esgoto subterrâneo com largas avenidas por cima. Espigões são agigantados por edifícios descomunais, as encostas destroçadas, várzeas ressecadas, terrenos esvaziados. Espaços são ganhos dos charcos e meandros dos ribeirões para se transformarem em bairros de luxo, em áreas de ocupação miserável, terminais de ônibus, conjuntos de casinhas tristes, zonas de meretrício.
A cidade é a morada temporária dos pobres nas favelas, nos cortiços precários, nas invasões e nas ruas, sob os viadutos e as pontes. É também o lugar de estadia passageira dos ricos que, um dia, irão viver no campo falsificado dos condomínios privados ou nas coberturas ecléticas de aço e vidro das Miamis dos sonhos pequenos burgueses. No entanto, por paradoxo, São Paulo se torna irremediavelmente definitiva na vida de seus habitantes, mesmo que milhões de pessoas se recusem a deitar aqui suas raízes e a se reconhecerem no tempo e no espaço.
Ah! Paulicéia Desvairada! Como fazer com que o futuro seja construído aqui, neste lugar, não como fatalidade, mas como desejo coletivo? Como vencer a incerteza do presente e a nostalgia insignificante do passado nessa cidade que acolhe e expulsa, inclui e exclui, seduz e afasta?
Talvez seja preciso encarar de uma vez essa esfinge urbana antropófaga para decifrar esse enigma do tempo paulistano. O desvendamento desse mistério tornará possível, quem sabe, que as novas gerações transformem o acaso em intenção e, então, possam compartilhar da lembrança de um parque de diversões na Mooca ou brincar de piratas no Tietê, estranho rio às avessas que nos afasta do mar. Pode ser que consigam ouvir músicas, aprender as danças das tribos urbanas, diferenciar as formas novas das antigas, conhecer um semeador de idéias e alguém com alguma memória. Andar de ônibus, freqüentar um bar, passear num mercado, ler livros, ver uns filmes, fazer amigos. Lembrar de cor de uma praça, dum jardim, uma fábrica, de alguns poemas, dum colégio e daquele edifício que tem as curvas da mulher amada. Daí, desenhar o futuro, escrever uma história, contar histórias, fazer a história.
Rosa Artigas é paulistana e historiadora.

4 comentários:

Anônimo disse...

Ganhei até uma ilustração! que chique. Vou por no meu currículo.

LIBERATI disse...

Querida Rosa,fiquei muito feliz ao ilustrar sua bela crônica, espero por outras.
bjs

ze disse...

Sphinx, questiona ela mesma Édipo , em sua existência (os monstros todos são enigmas): os Egípcios resolvem na imagem do corpo do leão parado e da cabeça humana de olhos abertos: vida ativa parada e vida contemplativa de olhos abertos respectivamente : são duas contradições. Marta e Maria respectivamente. É uma cruz paulistana a existência cosmopolita: crescer em apartamento ? longe dos pés no chão? parece pedir o campo. como se não houvesse cidade sem campo e vice-versa.

TS disse...

Exatamente assim que vejo Sampa: uma modernidade devoradora aonde é possível perceber nas "dobras do tempo" as coisas antigas. (me deu medo qdo lá estive...)