
(Resenha do livro "Ver e Imaginar o Outro" de Regina Dalcastagnè, escrita por Jorge Sangalrd (*)e publicada no jornal O Primeiro de Janeiro“das Artes das Letras” do Porto – Portugal. A ilustração da resenha é da autoria de Jorge Arbach)
Em dez ensaios reunidos por Regina Dalcastagnè, professora de literatura da Universidade de Brasília (UnB), a questão da alteridade, desigualdade e violência na literatura brasileira contemporânea é desnudada no livro “Ver e imaginar o outro” (Editora Horizonte).
O conjunto das obras literárias analisadas por pesquisadores de diversas instituições no Brasil e no exterior tem como referência a recusa à injustiça e à intolerância e uma reação contra estas nefastas práticas. O diálogo, a coexistência, a possibilidade do encontro e o convívio com a diferença marcam os ensaios, tendo como pano de fundo a violência que permeia nossa sociedade.
O escritor Luiz Ruffato ressalta o empenho da organizadora do livro na criação, em 1999, da revista Estudos de Literatura Brasileira, editada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, “um espaço democrático destinado a discutir a recente produção literária nacional”. Os textos integrantes de “Ver e imaginar o outro” são fruto da revista e refletem, segundo Ruffato, sobre a complexidade realidade brasileira, tendo a literatura como fonte de expressão e de compreensão, além de encarada em seus fundamentos estéticos, éticos e políticos.
E Ruffato assegura que o papel desenvolvido pela revista, num meio absolutamente avesso ao debate e à controvérsia, representou uma opção para os que acreditam no papel do intelectual como um produtor da história, e não como um mero comentador dela.
Na apresentação do livro, a autora lança mão de uma frase síntese do Manifesto da Antropofagia Periférica: “A arte que liberta, não pode vir da mão que escraviza”. E enfatiza: “O problema de se idealizar a literatura é o que essa idealização acaba escondendo”. Segundo Regina Dalcastagnè, das teorias que afirmam a literatura como um espaço aberto à diversidade até aqueles que a prescrevem como remédio para as mais variadas mazelas sociais (da desinformação à ausência de cidadania), podemos acompanhar o processo de idealização de um meio expressivo que é tão contaminado ideologicamente quanto qualquer outro, pelo simples fato de ser construído, avaliado e legitimado em meio a disputas por reconhecimento de poder.
No Brasil, hoje, afirma a organizadora do livro, os autores são, em sua quase totalidade, homens, brancos e de classe média. Eles reclamam das dificuldades enfrentadas para publicar, ser lidos e, obviamente, sobreviver. Mas adverte: “Reconhecer essas dificuldades no campo literário não pode equivaler a entendê-las como as únicas existentes, nem como as mais sérias”.
Dalcastagnè afirma ainda na apresentação do livro que “é claro que os tempos mudaram, que algumas lutas por direitos civis desembocaram também na literatura, fazendo com que mulheres, negros, homossexuais, índios começassem, timidamente, a escrever”. No entanto, a autora destaca que eles ainda não foram incorporados de fato. E promover o rompimento com a estrutura dominante de pensamento é muito mais difícil quando não se percebe, ou não se assume, que nosso olhar pé construído, que nossa relação com o mundo é intermediada pela história, pela política, pelas estruturas sociais.
Negar isto, garante Regina Dalcastagnè, é insistir na perpetuação de uma forma de violência, que elimina da literatura tudo o que traz as marcas da diferença social e expulsa para os guetos tantas vozes criadoras. A autora destaca a importância da discussão sobre o modo como a narrativa atual engendra o olhar em seu interior, especialmente o olhar que incide sobre aqueles que a sociedade brasileira não quer ver: estranhamento, exotismo, crueldade, melancolia, cinismo, testemunho são termos que reaparecem aqui e ali, seja como centro da análise, seja como uma tentativa de discernir o que se passa do lado de dentro da obra, ou mesmo nas suas cercanias, quando se analisa a maneira como representantes de determinados grupos sociais são recebidos, ou não, no campo literário brasileiro.
Um bloco de textos agrupados no livro tem como fonte o olhar. Um segundo bloco abrange artigos voltados para a questão da violência. O terceiro bloco trata do problema da exclusão. A temática da fronteira entre a loucura e a razão também marca presença no livro.
No texto “Uma sociedade do olhar: reflexões sobre a ficção brasileira”, de Lucia Helena, a sociedade do olhar é revirada de cabeça para baixo. Segundo a pesquisadora do CNPq, “Um bombardeio de ícones congestiona a paisagem e, queiramos ou não, altera a convivência, a percepção de nós mesmos e dos outros e, principalmente, nossas formas de sentir e pensar. Daí a flagrante presença do tema na ficção brasileira, desde as três últimas décadas do século XX”. Para Lucia Helena, na sociedade do olhar, todos espiam, mesmo que não voluntariamente, o que não quer dizer que enxerguemos melhor. Ainda na abordagem da ensaísta, “olhar, espiar, flagrar, observar são modos de ser de um eu que se pulveriza nos ‘fotogramas’ de uma subjetividade que se (re)conhece como imagem, ela mesma, captada e construída, ao mesmo tempo, no conluio do ser consigo e com o que dele diz a avassaladora carga de flashes a que um cotidiano violento o submete e ao qual ele reage”. E Lucia Helena enfatiza: “ser e atuar andam juntos na pós-modernidade”.
Já no ensaio “Cenas da crueldade: ficção e experiência urbana”, Ângela Maria Dias traça um painel da estreita relação da literatura brasileira contemporânea com a vida urbana e ressalta que essa perspectiva vem configurando uma recorrente perplexidade diante da experiência histórica, ficcionalizada como absurda e inverossímil. A também pesquisadora do CNPq aponta que “além da crueldade da convivência nas metrópolis ocupadas pelo presente perpétuo das imagens e pelo cortejo dos males da desigualdade social, o real transparece como trauma”. A ensaísta lança mão do conto “Intestino grosso”, do escritor Rubem Fonseca, de 1975, para destacar que a cena das cidades empilhadas do presente só pode apresentar, como alternativa à “fantasia oferecida às massas pela televisão hoje”, o avesso de “uma literatura de autor ou de mestre”, que seu personagem batizou de “pornografia terrorista”.
Em seu texto intitulado “No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje”, Tânia Pellegrini argumenta que há quem afirme que o conjunto da cultura brasileira atualmente exige novos modelos de análise, capazes de estimular novas leituras e interpretações, uma vez que a tendência à exarcebação da violência e da crueldade, com a descrição minuciosa de atrocidades, sevícias e escatologia, vem pontuando cada vez mais tanto as narrativas literárias quanto as audiovisuais, do cinema ou da televisão. E arremata: “Como se a dramatização do princípio da violência passasse a ser a diretriz principal da organização formal, com seu caráter inarredável e obsceno, subsumindo tempos e espaços, personagens e situações”.
Ao traçar um “Breve mapeamento das relações entre violência e cultura no Brasil contemporâneo”, Karl Erik Schollhammer adverte que a intenção de seu ensaio não é discutir o fenômeno da violência brasileira do ponto de vista sociológico nem político, senão tentar refletir sobre o papel da violência dentro da produção artístico-cultural e literária dos últimos anos. Sem pretender explicar o fenômeno histórico da violência no Brasil e nem de dar conta da pluralidade de seus parâmetros culturais, sociais e econômicos, o ensaísta afirma que, ao estabelecer uma relação entre a violência e as manifestações culturais e artísticas, busca deixar claro que a representação da violência manifesta uma tentativa viva na cultura brasileira de interpretar a realidade contemporânea e de apropriar dela, artisticamente, de maneira mais “real”, com o objetivo de intervir nos processos culturais. Segundo Karl Erik: “As iniciativas civis de combate à violência que surgiram durante os últimos anos oferecem um caminho absolutamente compreensível e justificado, porém não suficientemente eficazes diante do vácuo simbólico resultante da desagregação social”. E alfineta: “Se a violência é a brutal expressão de uma ausência de negociação social, ao mesmo tempo é a demanda impotente de outra forma de simbolização, cuja energia pode ser um poderoso agente nas dinâmicas sociais”.
No ensaio “Vozes nas sombras: representação e legitimidade na narrativa contemporânea”, a ensaísta e organizadora do livro, Regina Dalcastagnè, afirma que o silêncio dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a ele, vozes que buscam falar em nome deles, mas também, por vezes, é quebrado pela produção literária de seus próprios integrantes. Segundo a pesquisadora do CNPq: “O problema da representatividade, portanto, não se resume à honestidade na busca pelo olhar do outro ou ao respeito por suas peculiaridades. Está em questão a diversidade de percepções do mundo, que depende do acesso à voz e não é suprida pela boa vontade daqueles que monopolizam os lugares de fala”.
Enfim, o livro é um convite à reflexão sobre as relações entre a violência, a exclusão, a desigualdade e a cultura no Brasil de nossos dias.
(*)Jorge Sanglard- Jornalista brasileiro, pesquisador e organizador da antologia "Poesia em Movimento"
Um comentário:
falta étnica no sentido de que falta etnia na cidadania. falta a Natureza encontrar o ser humano e vice versa. a cidadania é o encontro com a Natura.
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