1.4.09

Carlitos, quem diria, está usando saias e botinhas!


Uma coisa me intrigou, sábado no Espaço de Cinema quando fui assistir “O Visitante” . Por que tanta gente estava tentando ver - “Simplesmente feliz”. ! Confrontado com o título, comecei a achar que eu andava muito sério ultimamente. O que tem de mais um filme sobre a felicidade? Não pode não? Então, no domingo, mais uma vez interrompi o trabalho da minha mulher pela paz mundial e fomos ver esse filme sem alimentar grandes expectativas.
Descobri que “Simplesmente Feliz “( este é título em português que achei bem melhor que o original inglês Happy-go-lucky) me trouxe um problema e uma descoberta.
Falarei primeiro da descoberta (para mim maravilhosa) - ou seja, de Sally Hawkins- a atriz que faz o papel principal do filme, Poppy, a professorinha alto astral. Ela é um verdadeiro Carlitos de saias. Não só no jeito de corpo com que interpreta( tão característico dele na época do cinema mudo), mas até no rosto, no olhar. Tem mais, ela se expressa quase como se fosse um personagem de desenho animado, (muito animado mesmo!) pela maneira rápida de responder aos diversos chamados, perguntas, solicitações várias de pessoas e situações e pelos sons que emite, quase uma trilha sonora com sonoplatia e tudo. Aumenta essa sensação, o fato dela interagir com as coisas (animismo?) , falar com elas, não distinguir nem excluir nada e ninguém de sua vida entusiasmada.
Agora vamos ao problema: O filme me incomodou. Fiquei com o sentimento de que não gostei dele quando desci as escadas da sala de projeção para mergulhar na realidade. TAÍ, o problema nesse filme foi a presença-ausência da REALIDADE. Poppy passa longe do chamado “Princípio de Realidade“(*). Ela deixa isso claro, logo no começo do filme, quando depois de uma bela sequência de Poppy pilotando uma bicicleta - a moça entra numa livraria, onde “cutuca” um sisudo livreiro e, num determinado momento, dá uma paradinha diante de um livro que tem no título a palavra “realidade” . Ela então solta uma frase mais ou menos assim: -Realidade, tô fora! E sai rindo.
Mais tarde, tentando me entender com o filme me lembrei então, de uma frase do divertido livrinho “Esperando Foucault, ainda” do antropólogo Marshal Sahlins que diz o seguinte: “a realidade é um belo lugar para se visitar (filosoficamente), mas ninguém nunca morou lá.”
Fugir da realidade é uma tendência humana universal, isso explica um pouco, porque entramos em salas escuras de cinema para ver a vida dos outros. E pior mentiras, belas ficções contadas em 24 quadros por minuto (ou por segundo?) - uma projeção, um pneuma!? Naqueles momentos esquecemos um pouco de nós mesmos, nossos problemas, as contas para pagar, o preço abusivo do plano de saúde, o orçamento do dentista....e vai por aí.
Porém Poppy não vive numa bolha, de vez em quando dá uns esbarrões na realidade com sua felicidade irritante, quase perversa.
Isso me fez pensar também o quanto irrita as pessoas a felicidade dos outros. Ou melhor, a estridência da felicidade alheia. Principalmene na era dos fármacos antidepressivos que mantém a sociedade tarja-preta funcionando. Lembrei também daquela máxima de que notícia boa é notícia ruim. - essa é que dá manchete, que chama atenção!
Pode ser que o roteirista e diretor Mike Leigh tenha pensado nessas coisas , mas acho que no fundo ele não pensou em nada disso. Ele gosta de improvisar como fez em outros filmes seus e disse isso segundo minha pesquisa recente - pensou na atriz e começou a criação da história - sem muitos compromissos com a “realidade”.
Isso significa que para nós o problema continua. Poppy é tão feliz que chega perto da idiotia. Alguém disse que Mozart também era assim, quem não lembra de seu riso ruidoso (e igualmente irritante) em “Amadeus”? Dizem as más línguas que ele era- sem contestação- o maior gênio da música, mas seu comportamento descacetado beirava a insensatez - babava na gravata.
No fim das contas, vi que aquele filme sem pretensões não me tinha feito perder tempo. Que ele me levou a pensar em como a felicidade se tornou algo estranho no mundo depressivo em que vivemos, nos signos dele gravados nos grafitis da cidade, nas sombras, na crise, no grande crash, na violência diária e banal em que estamos mergulhados, no caos ambiental, na poluição nossa de cada dia. Me fez lembrar até de uma passagem de Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino onde ele fala mais ou menos isso: Se nossas cidades viraram um inferno, nossa tarefa é tentar ampliar o que não é inferno. Serve como uma dica para entender o comportamento da moça? Talvez. Um filme que fala da felicidade - de uma felicidade individual, única, é claro que me perturba. Mesmo que a personagem principal em determinados momentos encontre a “barra pesada” ela sempre é atenuada. É caso da sequência do mendigo louco - que no entanto se mostra terno, contendo sua imensa violência , e se mostrando no fundo- um maluco beleza. Melhor para Poppy que saiu inteira da situaqção perigosa em que se meteu. (O profeta Gentileza iria se dar bem com ela). Porém o momento mais tenso é aquele que rola com o seu instrutor da auto-escola. E isso eu não vou contar para , sabe como é, não estragar o seu parzer.
Minha filha me disse que na cena do maluco-beleza surge a oportunidade de aparecer alguma vunerabilidade na personagem cuja felicidade parece ser de ferro.(felicidade=blindagem). Nesse momento ela cede diante do medo, do asco e depois da ternura em relação à “fera” enjaulada naquele mendigo. Na verdade tão outsider quanto ela. Ela que em certos momentos parece desconhecer os perigos e os limites dela e dos outros.
Engraçado, parece que Poppy está deslocada no tempo. Estaria mais a vontade na época dos hippies - na era de Woodstock , das utopias coletivistas anti- capitalistas sem revolução armada ( nos anos 60/70 na era da paz & amor) , antes de Lennon dizer que o sonho tinha acabado e os heróis de Easy Rider (Sem Destino) serem abatidos a tiros pelos rednecks. Poppy, por sua vez é uma heroína dos tempos neoliberais, do ultra individualismo, do embalo do ecstasy, das raves sem fim. Uma mocinha careta num mundo da química que altera a consciência de massas no embalo da música eletrônica, de drogados felizes com suas garrafinhas de água mineral. Definitivamente, esse filme não está ai de bobeira, seu diretor realmente é um agente provocador.
Leigh, a gente sabe, sempre pega pesado. É só ver “Segredos e Mentiras”(Secrets & Lies) e ”O Segredo de Vera Drake”(Vera Drake) ele bate da cintura para baixo. Acho que essa história de"Poppy"" tem alguma coisa além do fato de despertar algumas risadas- nosso problema continua e as fila seguem enormes. Talvez o segredo esteja no público, cansado de histórias deprimentes... he he he.
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(*) Segundo o Dicionário de Psicanálise de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon
“Princípio de prazer/ princípio de realidade” é um “Par de expressões introduzido por Sigmund Freud em 1911( “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”) a fim de designar os dois princípios que regem o funcionamento psíquico. O primeiro tem por objetivo proporcionar prazer e evitar o desprazer, sem entraves nem limites(como o lactente no seio da mãe, por exemplo) , e o segundo modifica o primeiro, impondo-lhe as restrições necessárias à adaptação à realidade externa.”

2 comentários:

ze disse...

claps, claps, claps (palmas)! mandou bem! isto é que é sinopse. a saída é a saída, sair da alienação do mercado. a realidade não é a realidade, do mercado, que vendem como se fora. o princípio da alienação de Marx ho-je com a crise branca nortista mostra-se verdadeiro : vivemos uma farsa econômico política. 'tudo é ilusão' teria dito o salmista. raízes e frutos é o que salvam. felicidades.

LIBERATI disse...

É isso aí, Ze, vivemos uma ilusão. Vivemos como crise o que é um grande crash, fruto da farra capitalista com o papel sem lastro.Esse crash se inscreve isto sim, dentro da grande crise que começa seu ciclo perto dos anos 70. É preciso ler com atenção István Mézáros.
grande abraço Ze.