27.8.09

Nova edição da Revista OAB-MG já está na ágora - e começa debatendo Os desafios da Democracia e dos Direitos Humanos no Brasil


(Saiu agora da gráfica e está com aquele cheiro de tinta nova a atual edição da Revista OAB - Quarta Subseção - MG - Nº8 - Agosto-Setembro de 2009. A ilustração da capa é deste blogueiro que vos fala. Dela destacamos o artigo de Eduardo C. B. Bittar)
Ensaio
Os Desafios da Democracia e
dos Direitos Humanos no Brasil


As fáceis vulgarizações nos impedem de enxergar as coisas como elas são. Especialmente, de enxergar as complexas tramas históricas que estão por detrás de cada passo na civilização. Quando se fala em direitos humanos, no Brasil, sempre se evoca um imaginário segundo o qual estes são ‘direitos de bandidos’, no jargão vulgar. Essa idéia encobre a face de uma das mais importantes conquistas da história da modernidade. As lutas atreladas ao pensamento liberal trouxeram consigo direitos humanos. E o resultado que colhemos? Direitos de liberdade de expressão, de opinião, de religião, de ir e vir, de imprensa, à intimidade e à honra, de propriedade. Direitos ligados à esfera do indivíduo. As lutas ligadas ao pensamento social trouxeram consigo direitos humanos. E o resultado que colhemos? Direitos de liberdade de trabalho, de associação sindical, à educação, à saúde, ao lazer, à segurança, à assistência. Direitos ligados à esfera do grupo e do coletivo. Não são, ambas, formas de expressão de ambições humanas, que expressam valores legítimos, e, socialmente necessários?
Se estas duas facetas da história da modernidade se recobrem de importante caráter construtivo para a lógica de funcionamento da luta por direitos, poderia o cidadão de hoje abrir mão dos ‘direitos de bandido’? Assim, a vulgarização não presta serviço nenhum à opinião pública e deve ser reavaliada em seu uso social. O que são, então, os direitos humanos?
São direitos que consagram e expressam aquilo que melhor caracteriza a condição humana, e, exatamente por isso, os mais fundamentais dos direitos, porque sem estes, não é sequer possível proteger o ser humano. Assim, brancos, negros, pardos, índios, caboclos, jovens, idosos, mulheres, homossexuais, homens, pobres, ricos, policiais, presos, trabalhadores, crentes, agnósticos, todos, indistintamente todos, têm estes direitos, assim como carecem destes direitos para poderem se afirmar como pessoa, seguindo a lógica da dignidade da pessoa humana, inscrita como fundamento da República Federativa do Brasil, no art. 1º., inc. III da Constituição Federal de 1988, que neste ano comemora seus vinte e um anos de história.
Se o tema ainda carrega estigmas, estes se devem à forma autoritária com a qual foi tratado o tema no passado, e se deve, ainda, à reprodução simplista da visão que se tinha sobre a matéria. Atualmente, num contexto de democracia, liberdade de imprensa, cidadania e consolidação do projeto de inserção política relevante do país nas relações internacionais, o Brasil não pode mais se manter alheio aos progressos havidos na matéria e nem aos necessários avanços que ainda são ressentidos na prática neste campo. Defensores de direitos humanos ainda continuam a ser perseguidos, mulheres vítimas de violência continuam a sofrer dificuldades na consagração de sua proteção, pessoas são brutalmente assassinadas pelo crime organizado.
Normalmente, o debate sobre o tema costuma se refugiar na avaliação de que ONG´s de direitos humanos não se importam com os direitos dos agentes da segurança pública. Em verdade, estas entidades da sociedade civil representam a sociedade civil, em suas angústias, em seus temores, em seus direitos, em seus problemas, nitidamente sociais, e, por isso, não representam o Estado. Mas, toda morte é sempre uma tragédia, toda morte merece consideração humana, e, mais do que isto, toda morte, em sua causação social, deve ser interpretada com seriedade no plano da atenção que a ela se deve dar do ponto de vista das políticas públicas.
Por isso, temos de nos reconciliar, se quisermos que o país siga adiante em suas conquistas sociais, políticas, econômicas e culturais, que já não foram poucas, no plano dos últimos vinte anos. É necessário caminhar sempre olhando para a barbárie; ela é a outra face da civilização. Por isso, dinamitar o caminho que se constrói no sentido da afirmação de uma cultura de paz, tolerância, entendimento, democracia e direitos humanos, é impedir que realizemos os ideais contidos em nossa própria bandeira. Por isso, os direitos humanos querem um espaço ao sol, especialmente num país que costuma ser conhecido pela sua identidade hospitaleira e cordial. Costuma-se ver no brasileiro o exemplo da cordialidade. “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’ ”, afirma Sergio Buarque de Holanda, em seu Raízes do Brasil.
Verificar se este traço persevera na caracterização do brasileiro carece, antes de tudo, que se saiba o que é cordialidade. A cordialidade, como traço de um caráter hospitaleiro, talvez seja algo notável do povo brasileiro, de fato. Esta é uma forma de cordialidade, bem apreciada geralmente pelos estrangeiros. Mas, existe uma outra forma de se expressar cordialidade no trato com o outro, e esta outra idéia remete à consideração do outro pelo que se constrói de comum na vida compartilhada. Sabendo que o outro depende tanto quanto eu do que é institucional e comum, ser cordial significa contribuir para o fortalecimento das instituições públicas.
Então, se cordialidade for o respeito às instituições que dão substrato para o equilíbrio da vida em comum, da vida social, a resposta à pergunta acima é, certamente, negativa. Isto porque parece vir do mundo da cultura um decreto que tem força de lei em nosso meio social, e ele se exprime da seguinte forma: “Quem for mais esperto, terá mais chances de se dar bem neste país”. Isto tem força carnal entre nós, brasileiros! Isto está na boca das pessoas, como por vezes é até invocado pela mídia. De um ponto de vista mais crítico, pode-se traduzir esta mesma máxima como formação ética e antropológica brasileira, e expressá-la na forma de um imperativo categórico que lhe é subseqüente, qual seja: “Sê esperto, e faz do teu comportamento a base de teu próprio benefício”. Desta forma, a noção de dever, tão cara ao campo da ética, se vê expulsa de nossa realidade. Isto também produz a impossibilidade de qualquer universalismo, uma vez que a singularização dos interesses preside a forma como a lógica do mercado, mas também o modo de entrada no campo da política se dá.
Sem contar que este imperativo cultural brasileiro inverte o imperativo moral que remonta ao pensamento de Kant, como expresso na Crítica da razão prática, que exige o compromisso de cada um com todos (“Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”), elemento este que serve de base para a ética e para a cidadania, ele é o caminho rápido e rasteiro para a dissolução da vida pública e compartilhada. É o famoso jeitinho. “Mas o uso do jeitinho e do sabe com quem você está falando? Acaba por engendrar um fenômeno muito conhecido e generalizado entre nós: a total desconfiança em relação a regras e decretos universalizantes”, como afirma Roberto Damatta, em seu Carnavais, malandros e heróis.
Quando um se arroga na condição de quem se torna o beneficiário (e nunca o devedor) máximo de tudo e, simultaneamente, age de modo a instrumentalizar tudo e todos em nome de seus interesses egoísticos, não há justiça possível. E isto haverá de se refletir em todos os extratos sociais e de muitas formas. Talvez tudo isso faça parte de um imaginário social formado a partir da originária forma de colonização expoliatória adotada na colônia (para onde pouco se leva e de onde tudo se traz), mas já é tempo de, proclamada a independência, revisarmos nossos valores. Isto porque são eles que continuam a influenciar ações sociais de todo gênero, tendentes à dissolução da vida compartilhada: a do corrupto que usa a máquina pública para seu benefício pessoal; a do criminoso, que vê no patrimônio alheio objetivo próprio; a do investidor oportunista, que vê com bons olhos a debilidade das políticas públicas e das instituições, disso tirando proveito para infiltrar seus interesses sobre interesses nacionais; a do funcionário público, que se exime de seu dever, em meio a culturas corporativas intransparentes e ineptas para a responsabilização; a do cidadão, que se afasta do que é público por considerá-lo assunto que não lhe seja afeto; a do corruptor, que se aproxima da máquina pública para colocá-la a seu serviço; a das elites descompromissadas, que se entendem acima de lei, da cidadania e da vida pública. Parece obra coletiva aquilo que se colhe como fruto disso: desordem social, impunidade, corrupção, mandonismo, violência, violação a direitos humanos.
Por isso, o que se constata é que não há nada de cordial no homem brasileiro se for considerado que, no período de 1980 a 2005, tenham ocorrido, em São Paulo, 7.659 casos de execução sumária pela polícia, que se registrem 1.329 casos de estupro, somente em 2003, no Rio Grande do Sul, ou de que, em 2003, se registrem 16,4% das crianças, entre 10 a 14 anos, ligadas ao trabalho infantil no Pará, ou que, no Mato Grosso, as denúncias de exploração sexual de crianças e adolescentes alcancem taxas de 7,25 denúncias por 100 mil habitantes, no período de 2003 a 2005, ou ainda, que, em 2003, 169 conflitos de terra tenham envolvido 92.390 pessoas, resultando em 12 mortes no Estado de Pernambuco, como registram os dados do 3o. Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Se isto for cordialidade, é bom que comecemos a nos esforçar mais para demonstrá-la, em benefício de nós mesmos, mas também para que os relatórios mundiais de direitos humanos atestem cada vez menos que nosso país tem sido muito pouco capaz de consolidar uma cultura efetiva, concreta e eficaz, no plano dos direitos humanos.

NR: Eduardo C. B. Bittar é Advogado; Livre-Docente e Doutor, Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, nos cursos de graduação e pós-graduação. Professor e pesquisador do Mestrado em Direitos Humanos do UniFIEO. Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP/ NEV-USP). Pesquisador-Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Democracia, Justiça e Direitos Humanos: estudos de Escola de Frankfurt”.

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