8.11.09

Centenário de Nascimento de Beatriz Vicência Bandeira Ryff


(Este blogue tem a honra de publicar o texto de Maysa Machado sobre esta adorável guerreira que é Beatriz Vicência Bandeira Ryff. Recebi o presente de ter convivido com seu filho Vitor Sérgio Ryff, que foi meu grande amigo.)
Dona Vivi faz cem anos!
O Leblon é um bairro claro, o sol entra cedo pelas frestas das cortinas de tiras de bambu... A brisa lhe faz companhia. Depois, um vento encanado passeia, sem pedir licença, pelo longo corredor. É comum ouvir-se o estrondo das portas... Que nos tira o sossego.
 
Está quieta em seu canto. Deitada no quarto, a cabeça no sentido contrario a porta de entrada, voltada para as ondas do mar.
O espaço pouco que ocupa... menor fica com o passar do tempo. Não diria que definha.
Desvanece.
Está quase nuvem. Branquinha, como num céu bem azul e luminoso, independente do movimento dos pássaros, do farfalhar das palmas dos coqueiros, lá onde o asfalto se perde em areias e depois vira mar imenso.
Seu sorriso não aflora constante; nem há sinal das angústias tantas sentidas pela vida, nas muitas lutas que travou.
Seu rosto é expressivo, contém viço e boniteza. Rugas? Pele sulcada por elas? Não, ali não residem, não fizeram nenhum estrago no semblante, ainda, altivo.
Está serena, desligando-se aos poucos do fio - terra que a mantém viva.
Que fio será esse? Cada um tem o seu.
O dela dura um século. Medem-se os sonhos, perdas, dores... Mede-se, também, uma invencível determinação tecida em poesia e alguns travos de amargura.
Tem a aparência cuidada. A dignidade a acompanha, pois, nada pede ou precisa.
As sombras lhe cobrem, dia e noite, o horizonte, mas disso não reclama. Uma vez que escolheu a treva progressiva.
No silêncio vive. Dá-nos a impressão que assiste sua história, numa tela em que as imagens, antes indeléveis, agora se esfumam, com suavidade e, não deixam qualquer possibilidade de serem mostradas de novo.
Há economia dos movimentos... É preciso não mexer com quem está quieta! Frase ouvida várias vezes, nos últimos anos, acompanhada de um sorriso maroto.
                                                              
Nos primeiros anos de convivência, minha curiosidade era aguçada, por uma faiança pendurada à porta de seu quarto. O ladrilho, em fundo branco, transcrevia um adágio italiano. Nele, a mulher vista sob o interesse masculino, relacionado às suas idades - dos 20 aos 60 – e comparando-as aos 5 continentes.
Um convite perigoso, quase um desafio para as mais jovens; desdenhava o passar dos anos, com encanto.
 
Nós duas aprendemos que o tempo pode ser cultivado.
Em nossos encontros li, para mútuo deleite, uma edição das Cartas de Graciliano Ramos - seu querido amigo, as crônicas leves e bem-humoradas de Rubem Braga, os textos densos de Nélida Piñon, Lygia Fagundes, Cecília Meireles.
Em todos esses momentos acrescentou reflexão lúcida, fresca, interessante.
Com imensa sensibilidade respirou o ar delicado de seus poemas e, renovada, os recitou de cor.
Por gosto cantamos.
Antiga professora de música e de técnica vocal, do Conservatório Nacional de Teatro, foi relembrando canções do folclore amazônico, as de Waldemar Henriques, como Tamba-Tajá; as canções imperiais na obra de Carlos Gomes - Tão longe de mim distante; as Bacchiannas de Villa-Lobos; algumas canções praieiras de Caymmi. E, da MPB, do seu preferido Paulinho da Viola, repetiu momentos cantarolando que Viver não é brincadeira não...
 
Muito tenho aprendido com as histórias e lições de sua vida. Da militância comunista, às prisões políticas, ao exílio em dois períodos distintos de ditadura em nosso país.
Gosto de sua poesia. E, acho pitoresca sua opinião irredutível, prefere ser chamada POETISA e jamais poeta!
 
Nossa intimidade foi uma construção difícil. Um tempo longo nos atravessou, mas o mesmo tempo trouxe-nos como fruto maduro, em nossas vivências, o que pode ser chamado: apaziguamento.
Tornamos-nos amigas.
 
Vivi, Beata, outros apelidos tem, mas é no seu próprio imaginário a Beatrice, de Dante. Faz pouco o declamava no original.
 
Dichoso cumpleaños, señora!
Mamá hace cien años.
 
 
 
 
• Beatriz Vicência Bandeira Ryff, carioca, do Méier, nascida em 08.11.1909. Uma mulher brasileira que se dedicou à causa da transformação política e social em seu país. Participou de distintos momentos históricos pela luta a favor das liberdades democráticas, dos Direitos Humanos e, por mais de oitenta anos, o fez a cada dia.
•  Presa política no período da ditadura Vargas, companheira da Cela Quatro com Nise da Silveira, Maria Werneck e outras corajosas companheiras. Inclusive Olga Benário.
• Exílios na Argentina, Uruguai (1936/37). Asilo na Embaixada da Iugoslávia 1964. Exílio na França - durante o Golpe de 64/67
• Vivi – apelido de criança, dado por seu amado pai. Alípio Abdulino Pinto Bandeira, militar do exército companheiro do Mal. Rondon.
      Perguntei se gostava de ser chamada assim. Respondeu com um sorriso feliz no rosto:
      - Gosto muito!
      Uma pausa e, acrescenta:
      - Não esqueço o que fui!
• Beata – apelido dado por seu marido jornalista Raul Ryff, falecido em julho de 1989.
• Uma das fundadoras do Movimento Feminino pela Anistia e Liberdades Democráticas.
• Teve três filhos. Vitor Sérgio, jornalista (falecido), os gêmeos: Luiz Carlos (Físico) e Tito Bruno (economista).

 
Santa Teresa, novembro de 2009.
 
Maysa Machado
(socióloga, militante política e sua ex-nora).
 

5 comentários:

Maysa disse...

Querido Lib

Grata pela companhia e acolhimento no seu espaço no dia do centésimo aniversário de Beatriz.
Acrescento à sua micro biografia sua descendência:
Oito netos:
Patrícia, Luiz Antônio, Fabiano, Carlos Eduardo, Júlia, Luiz Rodolfo, André e João Alberto.
Cinco Bisnetos:
Maria Beatriz, Ana, Raul, Cecília e Lara.
Beijo

Maysa

LIBERATI disse...

Foi um prazer publicar seu texto em homenagem à guerreira Beatriz. Bela homenagem.
bjs

TS disse...

Maysa, foi um prazer ler sua crônica-entrevista, vc foi mto afetiva.
Tbm houve uma centenária em minha família (no lado mineiro), de sobrenome Lott, que militou em outra área: a sustentação espiritual da família; nunca segurou bandeira na linha de frente, ou soube o que era uma passeata,foi batalhadora de bastidor, de fundo de cena.
Há vários tipos de guerreiros. Qdo é mulher, quase sp é guerreira silenciosa.
Abrs.
Tine

Maysa disse...

TS,
grata por ter gostado da crônica.
É, precisei, após os cumprimentos pelo século de Dona Vivi, acrescentar alguns dados biográficos e uma conversa incrível acontecida na quarta-feira.
Na verdade foi um pé de página "imensio", mas quebrar cânones faz PARTE!!
Abcs

Maysa

Dulce disse...

Liberati, muito prazer em encontrar você desta forma, através da crônica da Maysa sobre a Beatriz, uma pessoa que amo muito, desde que nos conhecemos no Movimento de Mulheres do PDT, junto com Maria Werneck, Maria Prestes e outras companheiras. Foram elas que me conduziram à presidência do MM-PDT e posteriormente ao Instituto Alberto Pasqualini. Li os originais do livro da Beatriz, quando seu marido estava na Clínica São José e ela passava por momentos difíceis. O livro de memórias da Beatriz é lindo! Foi uma das mulheres mais marcantes que conheci, principalmente por sua sensibilidade aguda e sua fibra. Parabéns, a você Liberati e a Maysa, pessoas também de fibra e alta criatividade que me fazem sair da rotina. Abraços, Dulce Tupy, editora do jornal O Saquá (de Saquarema): www.osaqua.com.br