16.11.10

Polanski tenta fazer cinema político em "O escritor fantasma"


(Advertência: Se você não viu este filme ainda, não leia esta crítica, pois ela pode revelar momentos que decifram a narrativa e contribuir para se prever o seu final.
Como vocês sabem, detesto estragar o prazer dos outros
)

Esta crítica vai de primeira, sem tirar o pé do acelerador - se alguns erros surgirem, corrigirei quando parar no pit stop

"O escritor fantasma"(*) (The Ghost writer) é um filme menor de Polanski. Afirmação insolente diante de um consagrado diretor, mas que tem alguma verdade se você tiver a pachorra de compará-lo com algumas obras-primas que o baixinho construiu .É só lembrar de títulos como O Pianista, O Bebê de Rosemary, Chinatown, A Dança dos Vampiros, A morte e a donzela, O inquilino, Tess, Busca Frenética, e o maravilhoso Cul-de-Sac (Armadilha do Destino)... Isso só para ter uma pálida idéia de seu legado, heterogêneo, mas sempre com um toque genial.
Não que "O escritor fantasma" seja uma fita ruim, é um bom entretenimento. É preciso lembrar que ele levou o Urso de Prata no recente festival de Berlim, mas os alemães são muito bonzinhos.
Bem, deixemos de firulas e vamos ao que interessa: este filme de Polanski envereda pelo caminho do thriller político- e não tinha como não fazer isso, pois é adaptação de um livro que trata de um tema cabeludo, mas o problema está em como ele faz isso. A questão é que ele privilegia o thriller, desqualifica o componente político e cede ao esquema reducionista da realidade, ou da relacão ficção-realidade. Pois este é o "pequeno problema" que ele não tenta resolver ao adentrar a zona do agrião do filme político. É aí é que a vaca tosse e o buraco é mais embaixo. É preciso ter a mente de um Costa-Gravas (Z,Estado de Sítio), de um Giuseppe Ferrara (de O caso Aldo Moro), de um Florestano Vancini (de Il delitto Matteotti) ou de Gillo Pontecorvo( de Queimada, Batalha de Argel) para captar as contradições que se armam na esfera da política, e mais, saber representá-las, coisa que no filme de Polanski fica faltando em favor do clima, do suspense, da teoria conspiratória. Pode-se dizer que no plano ideológico ele contribui para reforçar o mito de que o indivíduo faz a história (uma idéia napoleônica), ou no mínimo, que é o indivíduo que influi diretamente na política. Nessa concepção o indivíduo é um Crusoé sem o Sexta-Feira. Este tipo de pensamento que enaltece o fator subjetivo frequentemente olvida a a sociedade, ou seja as mediações, o contexto, o exercício da política como fenômeno social, o indivíduo como representante de forças e interesses em luta - questões como hegemonia, negociação, influência da mídia são escamoteadas. A mídia aparece bastante no filme, mas só aparece como um aquário onde os "fatos" boiam - não aparece como instância que também participa da decisão, como um "poder" entre poderes, como por exemplo na guerra do Iraque ( a propósito veja livro "A cultura da mídia" de Kellner, que trata entre outras coisas da influência decisiva da mídia na orquestracão que deu "legitimidade" para a primeira incursão bélica contra o Iraque, na época de Bush pai, quando o pivô era a invasão do Kwait por Sadam Hussein, já demonizado... Acredito que Kellner babaria ao analisar a participação da mídia no caso da manipulação midiática da procura por armas de destruição em massa - que não foram encontradas e que motivou a segunda invasão do Iraque- agora numa guerra de arrasar). É preciso que se diga que na cena contemporânea as decisões políticas são tecidas num "território" transnacional ( que foi reconfigurado com o desaparecimento da bipolaridade da guerra fria = URSS x EUA + aliados ocidentais) de alta complexidade. Seria necessário mostrar que o alinhamento do "herói" se dá dentro dessa realidade, mesmo que se trate de uma ficção. Complicado? Não, veja qualquer filme de Costa-Gravas e imagine como ele resolveria estes problemas. Pode-se dizer que a ficção ( o imaginário) tomou lugar do político, o desfigurou, reduziu, caricaturou e pior, deixa entender que as coisas são assim. Em síntese naturalizou essa mitologia .
***
Para se entender esta crítica é necessário falar um pouco da história que Polanski nos conta. Ele narra as aventuras de um ghost writer, que é aquele famoso escritor fantasma, geralmente um jornalista contratado por uma celebridade para escrever no seu lugar, seja um artigo, um discurso ou uma autobiografia que é o caso do filme.
Acontece que o ghost writer do filme encontra uma situação muito cabulosa- ele é contratado para substituir um outro que morreu afogado. As notícias oficiais relatam que seu antecessor aparentemente se suicidou ou sofreu um acidente no mar. Bota suspeita em cima disso! O trabalho dele é reescrever a autobiografia de um ex-primeiro ministro trabalhista inglês (de origem escocesa) que está afastado numa espécie de exílio nos EUA e no momento está sendo acusado de crimes contra a humanidade pelo tribunal de Haia- devido à sua colaboração na tortura e morte de ativistas do Afeganistão. Impossível não lembrar de Tony Blair e sua relacão estreita com Bush e todo o cenário da guerra do Iraque.
De qualquer forma, o filme fala de um personagem que apesar de fictício, é carregado de "realidade" . O tratamento que se dá aos seus movimentos no filme é realista - acompanhamos sua trajetória como se fosse uma reportagem de bastidores. A guerra de que se fala não é uma guerra fictícia e sim real que está acontecendo agora no Afeganistão e as acusações de tortura tem fundamento real. Esta prática de interrogatório foi admitida abertamente (chamada de submarino e que consiste no afogamento do interrogado) e defendida por George Bush em seu recente livro de momórias chamado 'Decision Points'. Daí que se eperava desse filme uma narrativa menos ingênua. O ex-primeiro ministro (fictício) aparece como um mulherengo, um sujeito despreparado e um tanto cínico - em síntese- uma caricatura. Há uma evidente tentativa de crítica, ao comportamento de determinados políticos adeptos do neoliberalismo que têm dominado a cena nos últimos anos, exagerando seu comportamento um tanto desinteressado das questões sociais e mais voltado para uma dolce-vita e jogos de cena. Esta perspectiva supõe que enquanto eles desfilam nos salões tomando uísque, as transnacionais e a as agências de segurança do Estado(CIA e outras) fazem das suas no submundo.
Na verdade essa representação se não é falsa, conta com uma distorção que desqualifica a participação do personagem, num momento histórico em que se dá uma virada na relação entre as decisões de Estado e a opinião pública e a mídia. O personagem do primeiro ministro afastado aparece como um fantoche, manipulado por forças ocultas. As decisões "políticas" no filme , acontecem de maneira muito imediata, num terreno abstrato, como fruto de conspirações. O que fica claro no filme é que essas decisões são representadas de forma muito rasa, sem base- não dão conta das articulações, dos interesses conjunturais , de que aquele homem que é primeiro-ministro representa um grupo sócio-econômico, que está inscrito numa tradição política( por exemplo lembrar que existiram os conservadores que na era Tatcher se alinharam de forma muito mais próxima dos interesses americanos), que existe outros elementos em luta, dentro de um contexto onde outros grupos também agem, e entre eles a mídia. Isso para falar de como as coisas rolam na efera interna de um país , no espaço territorial da Inglaterra, ou seja no interior do aparelho de Estado e suas conexões com a sociedade. Sem contar que hoje isto está incluído num espaço que cada vez mais se desterritorializa. Não vamos nem falar. das consequências da Globalização que aparentemente transtornaram e descentralizaram as decisões políticas para cenários diferentes - foros transnacionais onde múltiplos interesses dos grandes conglomerados negociam e rearticulam funções econômicas e poder político.
Enfim, a complexidade que serviria de fundo para a narrativa do filme fica de fora. No primeiro plano aparece a conspiração - a trama visível que o escritor fantasma desvenda e mostra que o primeiro ministro é um pau mandado ... (não falo mais porque vai estragar o seu prazer de ver o filme)
O que cabe perguntar é se Polanski é realmente um ingênuo em matéria de política, ou se está preso às malhas de uma antiga forma de narrativa onde existem resíduos de maniqueísmo? E mais, se está requentando uma velho estilo ao reforçar o mito da força do herói- indivíduo, mesmo que tragado por forças monstruosas e não muito bem esclarecidas?
(*) O filme acaba de chegar às locadoras em forma de DVD
Serviço:
O escritor Fantasma (The Ghost Writer)

França / Reino Unido / Alemanha , 2010 - 128 minutos
Direção: 
Roman Polanski
Roteiro: 
Roman Polanski, Robert Harris
Elenco: 
Ewan McGregor, Pierce Brosnan, Olivia Williams, Tom Wilkinson, Kim Cattrall

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