18.6.11

O rei de quase-tudo chega aos 40 em versão para iPad



( O jornalista Jorge Sanglard escreveu um belíssimo texto sobre um craque da ilustração, escritor e artista plástico Eliardo França. Fala de uma obra de Eliardo que é sensacional).

Não é fácil, no Brasil, permanecer no topo durante quatro décadas. Principalmente, quando se trata de um livro e de um autor infanto-juvenil. É isso que o ilustrador, artista plástico e escritor mineiro Eliardo França, que completou 70 anos em 17 de junho, celebra com seu primeiro e mais prestigiado O rei de quase-tudo. Em 1971, ao escrever e ilustrar o livro que se tornaria sua principal publicação durante 40 anos, Eliardo abria alas para uma tendência inovadora na literatura brasileira para crianças e adolescentes: a recusa aos desmandos dos poderosos e o anseio por liberdade e contra toda forma de injustiça e de opressão ditatorial. E o autor não sonharia que, passado todo esse tempo, a publicação ganharia uma versão para a plataforma iPad, criada por seu filho Lucas França, trazendo 13 páginas interativas e animadas, em quatro diferentes línguas (inglês, português, espanhol e francês), além de ganhar uma trilha sonora composta especialmente para a app.
       Criar um marco literário já no livro inaugural foi um estímulo extra para projetar a trajetória de Eliardo no cenário brasileiro e internacional. De cara, O rei de quase-tudo recebeu a menção honrosa no Concurso Paz na Terra, ainda no original em 1972, e se consagrou como “O Melhor para a Criança”, conquistando o Prêmio Ofélia Fontes da FNLIJ, em 1974, recebendo também menção honrosa na Bienal de Ilustrações da Bratislava, em 1975, e passando a constar da Lista de Honra do IBBY, a partir de 1979.

       A denúncia contra a tirania explicitada no livro se tornou uma referência, mas a vertente poética também permeia cada momento do texto e impregna a obra com força irresistível. O autor conseguiu lançar mão de uma forma de rara beleza e sintetizar um conteúdo ao mesmo tempo acessível e muito bem elaborado. O traço e as cores de Eliardo, neste livro, revelaram há 40 anos um ilustrador com pleno domínio criativo. Ao abordar a questão da impossibilidade de possuir o inexprimível, mesmo para um Rei, a história mostra como a liberdade e a paz podem vencer a avidez e o egoísmo. O Rei de quase tudo, o personagem principal, infeliz, deseja ter todas as coisas do mundo e queria sempre mais; assim, o Rei tenta conquistar o sol e as estrelas, até que percebe que existem coisas mais importantes do que ser o dono de tudo. Eliardo mergulhou nas limitações do ter e sugeriu uma reflexão: “Porque tendo as flores, não lhes podia prender a beleza e o perfume. Tendo os pássaros, não lhes podia prender o cantar. Tendo as estrelas, não lhes podia prender o brilho. E tendo o sol, não lhe podia prender a luz. O Rei era ainda o Rei de quase tudo. E ficou triste”.
       O que importa é o ser humano, é a alma do ser humano, enfatiza Eliardo. A boa ilustração e/ou a boa pintura são as que têm alma, diz com convicção.

       Para Elizabeth Vasconcellos, em parecer para a Fundação Nacional do Livro, “A obra aborda o atualíssimo tema do desejo de ter, característico da sociedade de consumo do final de século XX. Em detrimento do desejo de ser, o homem de hoje deseja apenas possuir bens materiais, sempre acumulando riquezas e apoderando-se de todas as novidades que o mercado lhe oferece. E assim simula uma aparência: parece ser feliz... Ao reconhecer que, em liberdade, cada coisa pode ser em plenitude e, assim, estender sua plenitude a todos, "o Rei viu que não era mais o Rei de Quase-Tudo. Ele agora tinha tudo". 

       Para Fátima Miguez, também em parecer para a FNL, “a relação entre literatura infantil e a temática do poder firmou-se nos anos 70, época em que a repressão e a censura definiam o sistema e a ordem da vida brasileira. A transposição dessa temática para a linguagem da literatura infanto-juvenil no Brasil realiza-se, então, como uma forma de se denunciar o poder arbitrário e ditatorial como modelo de governo. É neste momento histórico que surgem os nomes mais representativos da nossa literatura atual dirigida para crianças e jovens, como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Lygia Bojunga Nunes, Fernanda Lopes de Almeida, Eliardo França e tantos outros que desfilaram seus textos pela década de 70 empunhando estandartes de libertação”. 

       E, Roger Chartier, historiador, professor e diretor do Centro de Pesquisas Históricas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor do Colège de France, que estuda a história da cultura e dos livros, a trajetória da leitura e da escrita como práticas sociais, disse: “Gosto muito do Rei de Quase-Tudo. É um livro maravilhoso e prudente.
       A figura humana sempre serviu como sedução para Eliardo França, um dos mais prestigiados ilustradores brasileiros que, ao lado da escritora Mary França, vem realizando nas últimas quatro décadas um bem-sucedido projeto de livros infantis e infanto-juvenis, com sucesso editorial no Brasil e traduções em diversos países, tendo vendido mais de 15 milhões de exemplares de diversos títulos e formado algumas gerações de leitores.
       O essencial é o homem. Na verdade, o homem mudou muito pouco. Mudam as roupas, mudam os costumes, mas a alma do homem pouco mudou, seus desejos de expansão e seus desejos de conquista pouco mudaram nesses cinco séculos. Portanto, eu quis falar da alma do homem diante do desconhecido, afirma Eliardo.
       Depois de percorrer uma bem sucedida trajetória como ilustrador nas últimas quatro décadas, Eliardo confidencia que começou a se interessar por pintura bem antes, quando foi morar, durante um ano, na Dinamarca, por volta de 1989, para pesquisar a vida e a obra de Hans Christian Andersen para realizar um projeto editorial. “Como não estava ilustrando lá, comecei a brincar com tinta e me ocorreu que, com a pintura, poderia criar trabalhos de dimensões maiores e não só trabalhos de dimensões pequenas, como é o caso da ilustração. A pintura acabou virando uma paixão. Na verdade, eu sempre quis pintar, mas o envolvimento diário com a ilustração e com os livros acabou não dando oportunidade para a pintura acontecer e adiou a realização desta paixão. Eu não tinha tempo para pensar em pintar”. Agora, para Eliardo, a pintura e a ilustração são duas faces da mesma moeda: “Não acho que uma seja mais importante do que a outra. O fio que divide a ilustração da pintura é muito tênue. A ilustração é baseada numa idéia literária, embora ela tenha vida própria, porque a boa ilustração tem vida própria, e a pintura vem de um sentimento, de um feeling. Mas faço ambas com muito prazer, que é o essencial”.
Enfim, Eliardo França chega aos 70 anos esbanjando talento e comemorando a nova versão interativa de seu sucesso editorial O rei de quase-tudo. Tim-tim...
                                                  * * *

Jorge Sanglard é jornalista, pesquisador e produtor cultural. Escreve em jornais de Portugal e do Brasil. E-mail: jorgesanglard@yahoo.com.br

Nenhum comentário: