8.12.07

Crônica da Tinê


(Tinê é repórter deste blogue na roça e agora, para nossa sorte, também cronista - espero que continue por muito tempo assim)

Quando a cruz é uma curva

"... a gravidade engole tudo, da massa à luz e, descobrimos, até o tempo!", afirma em êxtase profano o astrofísico na tevê, brejeiro como se estivesse diante de uma classe do jardim de infância mas com a entonação firme de um pastor das trezentas e sessenta portas da fé.

Batido, é mais que rebatido, nesta esfera inferior do macrocosmo, a questão do encurtamento do tempo ao longo da história humana. Principalmente nesta época do ano, por motivos prosaicos: fechamentos, compras, formaturas, compras, confraternizações, compras, natalinas, compras, "hanukah, oremos", comilanças e bebedeiras e decorações, amigos-ocultos-cultos-e-incultos, os melhores e os piores do ano, mais um final, dívidas além das inúmeras velas, zum zum zum, 'tempus fugit'. Se já é complicado para um mortal entender o mundo em três dimensões, depois quatro com a já obsoleta teoria de Einstein, imaginem então um mundo em onze dimensões, segundo a última novidade pós-quântica, e aqui nem sei exatamente o que é a variável "T".

A gente começa por um ponto: a primeira luz que atinge os olhos nos devolve uma imagem borrada que vai se definir até descobrirmos que temos mão. Da mão pequenina àquela lata de deliciosos biscoitos, uma reta. O 'na-na-não!' reprovador mostra a altura de nossa ambição, apesar de já estarmos na pontinha dos pés e as duas mãos firmes na borda da mesa. Do epicêntrico lar doce lar caímos do berço no mundo enquanto o tempo faz a curva. Melhor dizendo, nós nos curvamos até retornarmos ao ponto.

O percurso é definido pelas regras, não importa o tempo que se leva para aprendê-las, desobedecê-las e recriá-las. Nem ouso falar das variações culturais. As doze badaladas acabaram com a balada extra-orbital de Cinderela, "La Cendrier", a donzela ao pé da lareira cuja função era recolher as cinzas e não rodopiar sobre cristais de bico fino e salto três e meio no pó estelar. E os dezoito badalos do sino da igreja próxima anunciam a oração. O que a lendária Borralheira e a bíblica Maria têm em comum? A variável "T". Alerta para uma, sagração para a outra.

Minha única gravidade é que nunca me dei bem com relógios. Digitais ou analógicos, funcionando ou não. Aos seis anos desenhei um relógio-despertador em pormenores mas faltavam-lhe os ponteiros. Como esquecer algo tão importante? Aos nove anos ainda não sabia ver as horas. Aprendi depois de muitos castigos por meus atrasos. Meu relógio biológico é noturno e não respeita horário-de-verão. Quando troquei a cidade grande pela pequena levei dois anos para desacelerar meu ritmo. Meus equipamentos marcam horas e datas diferentes. O mais lindo marcador que já vi foi o cebolão de ouro preso à algibeira do vô, dava um estalido ao abrir e fechar a tampa, foi deixado por ele para o filho mais novo, que por sua vez o deixou para o filho mais velho, e este o procura até hoje, ninguém sabe onde aquela raridade está marcando as horas. Nem o reloginho de pulseira de pressão da mãe que ela comprou com o primeiro salário, ainda solteira. O meu primeiro de loja de grife pegou chuva e enferrujou. O relógio de cuco antigo da tia-avó parou, nada o recoloca no prumo, a madeira empenou. O moderno que está pendurado sobre o computador, com pinceladas quadricrômicas, marca 12:50 há sete anos: virou um quadro.

Contudo, dos meus relógios, o mais desastroso foi um suíço, que meus ancestrais me perdoem. Era de plástico transparente, colecionável apesar do preço. O meu trazia uma obra geo-abstrata de Miró no mostrador. Num tempo de vacas-gordas, vinha eu com sacolas de compras pela Treze de Maio, do Largo da Carioca em direção ao metrô da Cinelândia. A alguns passos da estação, fui atacada por um menino que não devia ter mais de sete anos. Foi rápido. Enquanto eu girava para me desvencilhar dele, vi outros moleques mais velhos empoleirados no monumento em frente, plácidos, assistindo à cena como se dissessem 'essa é moleza, mano, tu consegue sozinho'. Vi as unhas sujas do menino cravadas no meu braço, vi o relógio arrancado ao chão, vi o sangue escorrer pela mão. Ferida, corri para a plataforma, a pensar: eu sou tardia, ele é precoce. Anos se passaram. Estive no mesmo local há um ano. Além das fachadas repintadas e de outros traços nas faces, a situação era a mesma. Então, não perdi as horas. Já o tal menino... "agora vamos saber quanto tempo uma estrela leva para morrer", anuncia o cientista televisivo.
(Tinê Soares - dezembro de 2007)

3 comentários:

Anônimo disse...

Caro Liberati, obrigada; mas este é o texto com erros, já tinha sido enviado outro e vc não viu!
Ao menos uma pequenina "errata", agora:
"hosh'anah, oremos," é "hanukah, oremos,";

"... e de outros traços nas faces, a situação é a mesma." é
"... e de outros traços nas faces, a situação era a mesma."

Excelente a idéia para a ilustração.

Bom Domingo procê. Abração.

LIBERATI disse...

Querida Tinê, desculpe não ter voltado no tempo certo para verificar minha caixa de correspondência. Mas os erros foram consertados.
Eu é que agradeço sua preciosa colaboração.
Bjs
Bom domingo procê também!

Anônimo disse...

Não há erros no texto lindo. O som do sino diário e perene lembra que todo dia é o mesmo, o mesmo em sua paixão. Estranho isto mas me parece repetição do tempo que se curva na volta. Não que os dias não sejam diferentes ! o relógio guardado aqui de casa no amor da estimação é de corda, de bolso, e alemão (ele fecha todo pra dentro como uma tartaruga recolhendo os membros). zé