13.3.09

Conto da Tinê: Sexta 13


Os lencinhos para lágrimas indiscretas teriam sido substituídos por maracas? Carioca, paulista, amazonense... diferença não faz. Chamo suas salas de Ouvidoria. Comoções à parte, são espelhos em que só muda a moldura – o ser humano sai do eixo de qualquer jeito; varia a forma de cada um se extravasar. Há quem prefira cair no frevo ou num bolero agarradinho. O chato é quando não se tem molejo de corpo e se desacerta o passo. É preciso equilibrar tudo: o nós conosco, o nós com os outros, o nós cosmogônico. A distância para o si-mesmo mede-se em ano-luz, às vezes. Sorrio ao imaginar um sujeito encarapitado no telhado a monologar para uma antena parabólica. O humor é que regionaliza a classe, dos clichês aos tiques. É o riso ou o siso. Mas... psicanalista baiano?
De todas as molduras, a da janela que se abre para a rua mostra reflexos mais interessantes. Lá vem Naná a pé carregada de sacolas. Naná falava pela rua a ninguém. Levar as compras a casa era um gesto mecânico. Parava um instante para redistribuir o peso nos braços, mas não fazia o mesmo com sua cabeça enquanto debatia com um ser invisível aos poucos pedestres que a viam. Ao perceber isto, Naná se recompunha, trocava as sacolas de mão, seguia até outra vez retornar à fala muda.
O bar próximo acabara de abrir, mesas na calçada para as sextas noturnas. Naná em seu quiproquó não viu o homem sozinho sentado à última mesa no meio do caminho. Tropeçou. Cadeiras tiniram e ela se viu estabanada em uma delas. Naná só conseguiu exclamar “Que calorão!” O moço interveio, “Desafoga!” Naná continuou de onde parara. --- Ele deve bipar para a secretária, assim (fez um trejeito): ô neguinha, paciente chegô naum? Aff... Ele deve ter parceria com a Mãe-Indaiá para o banho de erva complementar; limpeza geral! – dirá ele entre baforadas...
O moço quis saber... Naná não lhe deu ouvidos. --- Ele pode usar chinelas de palha, se enroscar em fitilhos do Bonfim, tocar atabaque nos intervalos... mas não pode um homem letrado alardear que teme os livros porque ao vê-los na estante se sente assombrado por seus autores como se de cada lombada saísse o retratinho holográfico de cada um a dizer “eu sou melhor porque cheguei aqui nesta prateleira!”, – sobranceiro, só o Divino! As ideias se misturam ao pó, o mesmo pó de onde todos viemos e de que somos feitos e dele fazemos uso, seja Hegel, dona Indaiá, eu ou ele.
O moço olhou para cima e fechou os olhos. Aquela postura travou Naná. Antes que ela reabrisse a boca, o moço perguntou-lhe o que a incomodava: não ter lido Hegel, não ter escrito um livro, ou não ter ido à Bahia? E emendou rápida história sobre Salieri que atirou o crucifixo ao fogo por ter se sentido injustiçado por Deus ao lhe negar o talento dado a Mozart; que este também fora vítima de sua condição humana, mas fez o que amava sem se preocupar com o que falavam dele nem esperar recompensa divina – morreu feliz, ao contrário de seu amargo contemporâneo de pauta.
Ela se tocou; estava diante de uma voz independente, um outro: --- Eu sou Narcisa, pode me chamar de Naná. E o senhor? --- Eu sou aquele que a observa a quadras, puxei a mesa para o meio da calçada na esperança de desfazer o círculo-vicioso que a enredou. Pode me chamar de “Sexta-feira-Treze”.
Naná fechou a matraca e tomou o rumo de casa sem pensar em mais nada além do cardápio para o jantar.
Tinê Soares (08/03/2009)

3 comentários:

Anônimo disse...

É, dona Naná, depois do vatapá cai bem uma dose de jurubeba.
As ideias são compartilhadas, o (des)uso delas é de cada um.
M.R.L.

ze disse...

parece então que a vida é contemplação, em telas várias. outro dia li que o essencial não é ensinável pelos livros posto que aprendido por cada um particularmente de um jeito. felicidades.

Anônimo disse...

se o narciso vive e vê o mundo dentro dele, não seria a Dona Naná a dar confiança para o “Sexta-feira-Treze”, seu oposto, por ser tão e exatamente o que o mundo fala dele. rerere