26.11.09
Santa Ira
Dona Mathilde até o fim, manteve o dedo indicador em riste. Com seus 88 anos de luta, ela teve, nos seus últimos momentos, como adversária, a natureza, principalmente seu sangue latino, seus ossos que se fragilizaram e a lei da gravidade, que a fez cair e quebrar o colo do fêmur. Como ela sempre dizia : 'la vecchiaia è bruta' (que quer dizer que a velhice é atroz).
Com seu coração de leoa, suportou uma difícil operação, que pretendia devolver-lhe o movimento, que ela tanto ansiava.
Mulher de temperamento forte, não era de ficar sentada esperando as coisas acontecerem, queria logo andar, agitar, colaborar. Foi um verdadeiro bodhisattva nessa terra-, generosa, solidária, sempre pronta para ajudar os outros. Herdou o caráter bondoso de sua mãe, Thereza, que apesar de sua vontade, não pode lhe transimitir o dom de curar com as mãos. Mas isso não a impediu de ajudar uma criança a nascer. Lembro -me bem dela às voltas com o parto difícil de uma vizinha. Com suas mãos de operária, muitas vezes ela alimentou e tomou conta dos filhos de nossos vizinhos na hora do aperto. E meus amigos pobres do bairro de minha infância, cansaram de filar a bóia lá em nossa casa. Na sua máquina de costura, ajudava a ganhar o pão que nos alimentava e consertava roupas que serviam para dar conforto a habitantes de asilos.
Acostumada, desde cedo com a aspereza da vida, apesar de sua índole boa, não seguiu o exemplo de mansidão da mãe, mas desenvolveu uma santa ira que a manteve de cabeça erguida diante das dificuldades, que não foram poucas. Neste mundo cruel, ela tinha lá uma maneira especial de demonstrar seu afeto - com ações e não com palavras : ela fazia coisas para agradar as pessoas de quem gostava, e orava em silêncio, no seu quarto por elas. Só uma vez na vida ela disse que me amava, e olhe que isso faz pouco tempo. Numa outra oportunidade recente, disse que sentia saudades do meu beijinho antes de dormir.
Amou e cuidou de meu pai até ele nos deixar em meados dos anos 90.
Foi uma avó atenta e carinhosa - adorava crianças. Brincava com seus netos no chão, com bichos de pano que aprendeu a construir e fez especialmente para eles. Fazia as comidas mais gostosas quando eles a visitavam. Para o menino fazia pão com chocolate, para as meninas bolos e rocamboles.
Foi obrigada a trabalhar cedo, o que a impediu de estudar além do primário, mas tinha uma inteligência sofisticada- quando a gente estava indo com a bandeja ela já estava voltando com o quindim. Quantas vezes nos ajudou a resolver os trabalhos escolares que os professores passavam para fazer em casa. Curtia o fino humor dos nossos craques da crônica. Entre os romancistas, lembro que gostava de Saramago (do qual leu Memorial do Convento e Evangelho Segundo Jesus Cristo) . Adorava o Zé Simão, especialmente sua irreverência, seu deboche, mesmo quando ele esculachava o Lula, que ela tinha em alta conta, mas que criticava de vez em quando. Porém eram marolinhas... reservava suas tsunamis para outros políticos, os direitistas safados, os corruptos da vez. Era uma pessoa justa e desconfiava como Proudhon, que atrás da propriedade privada havia um imenso roubo ou um "imbroglio".
Com seus olhinhos pretos, bem vivos, ela observava tudo, desconfiava do mundo. Com sua voz forte, indagava sobre os rumos da vida moderna . Muitas vezes perguntou onde iríamos parar do jeito que estávamos caminhando.
Tinha orgulho de seus netos, por ordem de chegada: um doutor cirurgião, uma estilista de moda ( costureira como ela) e uma artista que estuda na USP. Companheirona da filha, teve desta todo o amor e dedicação do mundo. Do filho "carioca" só falava bem, apesar dos grandes defeitos dele. Confesso que me salvou de várias encrencas e não vamos entrar em detalhes. Na última semana, disse ao pessoal da UTI que queria me dar umas boas palmadas. Quando me viu, no entanto, só me pediu para tirá-la imediatamente de lá. Ela me via como uma espécie de salvador, o cara que iria levá-la para uma casa idílica, aquela da sua infância de menina feliz, que pulava corda e cantava canções de roda. Claro que nunca cheguei a realizar este sonho dela. Mas ela conseguiu o seu intento de sair do Hospital - o problema é que queria mais, não se conformava com as exigências da convalescença, reivindicava o direito de andar livremente. Com sua santa ira, ela reclamou pela última vez e num segundo, um maldito coágulo se deslocou para lhe tirar a vida. Morreu de dedo em riste, não se conformando diante da natureza que lhe subtraia o ar.
Sua passagem se deu no dia 23 deste mês. Escrevo sobre ela com meu coração pesado de tristeza, e entendo que nunca conseguirei escrever o suficiente para mostar a grandeza de seu ser. Até o momento, oscilo entre a resignação e o ódio à morte. A morte está cercada de lugares comuns. Não vou invocar nenhum deles. Só vou lembrar de um frase que condensa um conhecimento que tento interiorizar : " Alegria na vida e alegria na morte - eis uma das essências expostas no budismo. Uma pessoa que vive plenamente a vida não teme a morte". Tenho certeza de que ela não temeu a vida, a morte teve que vir sorrateira, não teve coragem de enfrentar sua santa ira.
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10 comentários:
Querido Lib
Aqui continuamos nós, amigo, às voltas com a vida e com a morte.
A notícia em minha caixa de correspondencia,sua tristeza saudável,a rutura final.
Lá se foi D.Mathilde.
A dor da perda, a perplexidade do vazio definitivo.
E a vida correndo célere, um dia, outro ainda, mais outros...Quantos mais? não sabemos!
Esse é o primeiro mistério! Nos contam o dia de chegada e, para todos, igualmente, não é revelado o (dia) em que se parte.
Alguma pista, uma pequenina lição, nada!
Definitivamente, o mistério nos envolve com respeito a esse destino final.
Como amiga o que posso expressar: Viva, viva intensamente sua tristeza, sua perda, seu luto.
Recupere, com a ausência dela, os dias impunes de sua infância!
Você, em pouco , verá brotar uma imagem nova, nítida, delicada e duradoura dentro de você.
Será sua companhia mais íntima, ficará permanente a seu lado, nos momentos bons e nos que ...digamos a gente não escolhe!
Será a imagem construída pelo seu afeto.
O Homem doce e generoso que v. é tinha que ter por origem, a raiz-forte que teve.
Um beijo carinhoso
da amiga
Maysa
obrigado meu pai
bjs
E dessa ira fez-se tantos frutos do bem! Uma família incrível como essa só pode ser explicada por uma origem tão irada!
Força e paz! Com alguma ira, claro...
Marcio
Querida Maysa, você sempre amiga e com palavras generosas e sábias. Guardarei suas palavras no fundo do meu coração.
bjs
Bruno
Meu querido filho Pedro, perdemos a nossa guerreira. O bom é saber que ela descansou e não sofreu. Ela não suportaria ficar sem movimento por muito tempo - Seu coração foi muito valente ao enfrentar a operação. Não contávamos com esse maldito coágulo. Foi tudo muito rápido, como disse alguém, ela foi embora, mas volta logo. Desta forma, sua energia irada estará sempre do nosso lado - ela que nos amava tanto.
bjs
Querido Marcio, boa vereda essa que você e Pedro abriram e que trouxe sua amizade para perto da gente.Ter um amigo como você é uma honra.
grande abraço,
caro editor-chefe, tenha força, perder mãe é perder o mundo, e morrer tb, junto. esta questão de voltar ou não, a alma ao mundo, é complicada. ela pode ter se liberado, pode ter se emancipado, e não mais voltar. quem sabe?
Obrigado pela força, Ze.
grande abraço
Os pensamentos voam, voam!
A morte devia ser sempre como aquelas palmeiras no Aterro do Flamengo, no Rio:
esplendorosa em flores e frutos e... pfiuuuuu, é o anunciado fim da vida da planta-mãe altiva.
Beijos doloridos para ti e aos teus.
Tine
(notinha:li msg; continuo 'out')
Querida Tinê, vi as palmeiras altivas do Flamengo, onde a beleza da floração anunciam a morte delas.
O ser humano deveria ser assim, creio que evoluiremos para esta alegria na morte também, a a alegria de quem viveu a vida de forma plena e não teve o medo como obstáculo.
Minha mamma foi uma guerreira que agora descansa e se ilumina - virou minha estrela que sempre acho no céu dessa nossa terra ignota.
bjs
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