3.5.10

De olho do Clássico- À sombra do Vulcão - Lowry solta seus demônios



(Este textículo faz parte do meu projeto particular de encarar meus livros difíceis)
Terminei de ler, depois de um grande enfrentamento noturno, "À sombra do Vulcão"( publicado pela Editora Siciliano com tradução de Leonardo Fróes). Trata-se simplesmente da obra mítica - o estranho romance, que o também estranho Malcolm Lowry (1909-1957) publicou em 1947 e que é considerada uma das melhores obras literárias do século XX. A história desse livro daria um enredo para um outro livro, só que de aventuras, pois Lowry, para escrevê-lo, passou por poucas e boas. Teve que enfrentar as fúrias, a perda , a rejeição, muita maluquice . Demonstrou uma invejável persistência, ou o que alguns críticos chamam de obsessão, que o levou ao imenso trabalho de reescrever o que havia perdido, ou sido rejeitado várias vezes. (Reza a lenda que fez vários esboços, que primeira versão da obra foi recusada por todos os editores que procurou na época, e uma das versões quase sucumbiu a um incêndio de uma cabana, onde o excêntrico escritor resolveu morar com sua corajosa segunda mulher, Margerie Bonner).

Antes de ler "À Sombra do Vulcão", eu tinha assistido sua adaptação para o cinema, que John Huston fez em 1984 . Lembro que fiquei impressionado com a atmosfera carregada de morte e fatalismo do filme. Não era para menos , a obra se passa no dia dos mortos, que no México é celebrada com uma baita festa. Crianças saboreando caveirinhas de açúcar, homens se embededando, mas que tem com substrato a realidade dramática do país - uma espécie de paraíso danado onde se projeta a delirante solidão de seu personagem principal: O Cônsul (britânico) Geoffrey Firmin. Claro que depois da leitura , vi que apesar do mesmo tema, o filme é algo totalmente diferente, o livro em sua complexa arquitetura não caberia em poucas horas do registro num rolo de celulóide. Está para ser escrito o roteiro que consiga ser fiel a esse livro. Se o modo de narrar do filme tomasse, mesmo que homeopáticamente um tiquinho da fragmentação do livro, o espectador sairia com náuseas, assim como algumas pessoas sairam do cinema depois de ter assistido a um filme em 3D com óculos mal ajustados. Depois de um exemplo maluco deste, é melhor mudar de assunto, - e a melhor maneira de virar a página é dizer que essa de ficar comparando filme com livro é uma furada.

Uma observação se faz necessária ao leitor da edição brasileira: Evite ler de cara a introdução de Stephen Spender, pois ele adianta tudo de essencial que vai acontecer no livro ( a figura acaba estragando o prazer da leitura, entende?). Apesar da excelência de sua análise da desconstrução de Lowry , em especial a comparação com a estética de crise do homem moderno expressas nas obras de James Joyce (Ulisses, Finnegans Wake) e Eliot ( The Waste land). Na verdade, esse ensaio deveria ser lido depois do leitor atravessar a multifacetada história do Cônsul, seguindo as palavras do próprio Lowry - (não sei por que a editora não incorporou esse texto crítico , como uma espécie de posfácio).

"À sombra do Vulcão" poderia ser definido grosseiramente, como um monumental porre - uma saideira atravessada por mitologia, filosofia, crítica política, Guerra Civil Espanhola, memórias, citações, muito cinema, cortes modernistas à maneira das colagens de jornais e anúncios dos quadros de Picasso, Braque e companhia bela, momentos de grande confusão mental e de uma lucidez radical e suicida como afirma Spender na apresentação acima referida. O crítico também ressalta que "À Sombra do Vulcão" talvez seja a melhor descrição de um bêbado na ficção." Não procure uma ordem nessa travessia, deixe-se levar pelo fluxo da consciência alterada pelo escritor, no final vai ter um grande painel do Inferno de Dante só que pintado por Jackson Pollock.( que também bebia pra cachorro)
Existem várias maneiras de interpretar a crise "existencial" do Cônsul, algumas delas caindo no caminho fácil de encontrar paralelos autobiográficos - o que é por demais evidente. Lowry também tomava todas, era um exagerado! Morou no México e foi expuso junto com sua segunda mulher e teve uma primeira esposa - que deve ter servido de modelo para a "Yvone" do livro. Essa mulher abandonou Lowry por causa dos seus excessos no uso da bebida. O alcoolismo parece ser uma marca de alguns escritores de sua época - mas não me lembro de nenhum que tenha escrito um livro tendo por objeto um de seus pifões.

Como saída do atalho autobiográfico que pouco explica, creio que é necessária uma construção mais sofisticada para decifrar as ruínas de Lowry. Uma cuidadosa escavação que leve em conta os porquês da renúncia do mundo - e o que significa estar sóbrio diante dele. Não sei por que me lembrei do Estrangeiro de Camus e sua recusa...nessa novela a culpa era do sol. E o grande símbolo mexicano é o sol, a bola de fogo que tanto encanta como queima as asas dos que se aventuram a voar muito alto- as alegorias que lembram a queda. Pois é, temos que levar em conta também a idéia de sombra (que está no título)- a mente que se torna sombria mesmo com o sol a pino, as camadas de lavas do vulcão - na verdade dois vulcões o Popocatepetl e o Ixtaccihuatl - a metáfora (entre muitas) doz vulcões interiores, aparentemente extintos e ferozes. Malcolm Lowry partiu desta para melhor com apenas 47 anos de idade, um de seus biógrafos fala de morte acidental. Ele se extinguiu, mas o vulcão de sua obra continua a explodir e jorrar sua lava enigmática. Porém não se pode deixar de fora o possível efeito do mescal (ou mezcal), como fonte de um rearticulação do personagem , ou do autor em relação ao mundo. Esse rude destilado do agave azul parece levar à uma espécie de Weltanschauung tropical.

Bem chega de gracinhas, à leitura macacada!
(Existe uma nova publicação de À Sombra do Vulcão" pela LP&M Editores com a mesma introdução de Stephen Spender. Sei também da existência de duas biografias de Malcolm Lowry : a recente "Perseguido por los demonios: Vida de Malcolm Lowry" de Gordon Bowker publicado pelas Editoras Fondo de Cultura Económica e Fondo Argentina e o livro de Douglas Day , "Malcolm Lowry - una biografia", também publicado pela Fondo de Cultura Económica- desde 1983- este eu tenho mas não empresto pra ninguém)

3 comentários:

Patty Weber disse...

Seria "à sombra do vulcão" um livro existencialista?

Patty Weber disse...

Seria "À sombra do vulcão" um livro existencialista?

LIBERATI disse...

Pode ser sim, Patty (desculpe só ver este seu comentário agora), mas existe algo nele muito mais estranho, um estranhamento do mundo.Tem nele um mistério. Ele carrega algo de autobiografia. John Huston fez um belo filme com o título Under the Volcano. Esse livro é também ligado à tradição da alta modernidade européia, vejo um pouco das loucuras de Joyce nele e outros. Mas existe sim aquele mal estar existencialista que não se encaixa no mundo. Abraços